A Primeira Morte – por Jaime Vaz Brasil
“Da primeira vez que me assassinaram…”
Mário Quintana
I.
Se me quiseres matar
basta apenas o riscar-me
dos teus cadernos e mapas.
Sem adagas, sem alarmes.
E basta apenas um tiro
da palavra mais aguda.
Não mais atires, que morto
não geme nem pede ajuda.
Tarefa simples, matar-me:
uma seta é suficiente.
As demais, apenas sangram
o que de mim é morrente.
Se então me queres matar,
o mel à língua da espada
não mais esgrima comigo:
já estou morto. Um grande nada.
II
.
Mas eis um morto-falante
que prende a frase em seu gelo
e abre o verbo nos lábios
de quem o perde, sem tê-lo.
Memória: um vento imprevisto
onde a frase da sangria
Quanto mais perto o algoz
– quanto maior a estima –
mais morre o morto-falante
que espera terra por cima.
O corpo morre ou desvive tem asa de bumerangue.
Voeja, mas volta um dia.
Nos desatalhos do tempo
o adeus caminha e resiste.
Estás livre, estou bem morto:
nem morto-em-riso, nem triste.
Na concha gris do silêncio
um morto que espalma a vida
das digitais do silêncio
à fruta jamais colhida.
III.
Na sola da longa insônia
a dor plange o desencanto.
Os lenitivos são parcos.
De minhas veias, no entanto
o sangue sangra – invisível –
e meu sol desarde, frio.
Morri, de morte matada.
Foi Solingen, de bom fio?
Punhal dourado em Toledo
para os carinhos do aço?
No leito de qual dos gumes
me resvalou o cansaço?
Em meu silêncio, enterrei-me.
Adormecido, e decente.
(Pior seria mostrar-me
em sorriso, frente a frente).
IV
.
Melhor é morto morrido.
Mas este morto-que-fala
desliga, às vezes, seu ócio
vira de lado e descala.
Se é meu enterro, não choro.
Compareço, a contragosto.
(Mas enquanto desço ao poço,
meus ditos sobem de posto).
Frase de morto é o que volta
no balde, em corda e roldana.
Água seca, mas sentença
que em pedra e silêncio exclama.
Palavra de morto vive
no que grava, em cada ouvido.
E ganha o bronze que move
a balança dos sentidos.
V
.
O que levamos, e onde?
A verdade. Nada mais.
(Quem mente frente ao espelho,
beija os próprios arsenais).
na hora exata e cruenta?
A dor não explode em eco
no silêncio que se aguenta.
O caos é um sol desbotado
na palma de cada prece.
Mas o tempo que me hospeda
rege um corpo que anoitece.
VI.
– O Imperador está nu,
disse uma vez um menino.
(O conto omite ou esquece
de revelar o destino
daquele cuja palavra
no veludo da verdade
foi ave pequena, em grito
para os cegos da cidade).
Vivi no porão da escrita
ou fui o menino morto?
E em qual palavra ou poema
há que almejar-se conforto?
A memória se descola
mas a noite crava o sono.
(Se a vida possui regentes,
a morte só tem um dono).
VII
Ao morto, cabem as pedras
do silêncio, sem mais prantos.
Morrer é trocar de estado.
Mas o depois, entretanto,
compõe discursos e teses:
a fé constrói os abrigos.
(Pior que a morte das carnes,
seria um viver de umbigos).
Enquanto a vida nos foge,
qual a lista que separa
o que é mito, medo ou pranto
da razão, pesada e clara?
Mas o morto falou muito.
E morte é sem fala ou pista.
Nos ergue a vista e apenas
apaga o que mais exista.
VIII
O ex-vivo que vos fala,
– que nunca morrera antes –
ouviu atento o processo
e condenou-se ao instante
do julgamento-avessado
onde a vítima cai, presa.
Mas quando a vida transita
e deixa-se à face ilesa?
Que venha a morte mais simples:
sem dores e sem tormentos.
(O morto aguarda em urgência
a pedra do esquecimento).
À fresta de alguma reza
o morto é aconselhado
na horizontal de seu sono
dormir de um todo, e calado.
IX
.
E falar ao surdo-em-morte
de nada vale ou adianta.
(Na madeira onde discursa
não grita, ouve ou levanta).
Melhor que assim permaneça:
o morto é um ser desatento.
A ele, damos as costas
entre flores e lamentos.
A morte é clava na terra
ou asa aberta no alto?
É vento ou grande buraco
ao corpo, preso-de-assalto?
A morte às vezes estampa
vesguices de pensamento.
Mas serve ao vivo saber-se
vesgo ao morto, em seu momento?
X
Raro, este morto assumido.
É bom desviar-lhe a mira.
(Em morto não mais se cospe,
em morto não mais se atira).
A vida impõe muitas buscas.
Mas quem lê as entrelinhas
sabe que nelas se esconde
bem mais do que se adivinha.
Caso o morto respondesse
item por item os gritos
de quem, por cego, matou-o:
teríamos cura ou conflito?
O morto vai ao degredo
com alma descalça e nua.
Não há palcos nem estrelas:
na morte ninguém atua.
XI
Mas o morto está falando
a noite e o dia inteiro.
E há que levá-lo em pressa
ao contracéu do canteiro.
Que se abra logo a cova,
e seja profunda ou rasa.
(Eis a cama onde se igualam
os homens, no chão da casa).
Depois, que o cimento acolha
qualquer epitáfio ardido.
É cedo para balanços
e tarde para o não lido.
XII
.
Que outra morte se agende,
se mais me quiseres morto.
(Do pó ao pó. E mais nada:
um barco que volta ao porto).
Foi além do que previa
o morto-vivo que fala.
Guarde as adagas, morteiros,
os punhais, a frase-bala.
Morrer-se, mas não estando,
ou estar vivo – sem vida –
é guardar, sem mais ter língua,
o gosto da despedida
A poesia
A Primeira Morte, de Jaime Vaz Brasil, de Porto Alegre, conquistou o 1º lugar na categoria Poesia no 26º Concurso Literário Felippe de Oliveira, em 2003. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Richard Mcall / Pixabay.
ATENÇÃO
1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.
2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.
3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.
4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.
5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.
OBSERVAÇÃO FINAL:
A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.