Carta aberta aos meus vizinhos e vizinhas da Nova Santa Marta – por Valdeci Oliveira
Os 30 anos de uma ocupação com mais gente que em 263 municípios gaúchos
Escrevo estas linhas não só para falar dos 30 anos de algo que, a partir de Santa Maria, foi exemplo para o RS e para todo o Brasil, com a organização popular mostrando ser a resposta contra as injustiças sociais e pelo direito à moradia. Escrevo mais para agradecer, de coração, a oportunidade que me foi dada de participar, apoiar e me envolver, desde o primeiro momento, de uma luta justa, verdadeira e carregada de sonhos. Agradeço a cada um e cada uma que conheci e me relacionei nessa bela trajetória, por tudo o que aprendi, por terem reforçado em mim a certeza de estar do lado certo, de encarar de frente o temor das ameaças, dos riscos dos confrontos com aqueles que representam e têm o poder, pois sabia que não estava sozinho.
Hoje, quando recordo dos vários momentos de dureza e dúvidas quanto aos desdobramentos e desfechos que poderiam surgir, das ameaças nem sempre veladas e do preconceito vindo de todos os lados, lembro da fibra e da vontade de lutar estampadas nos rostos de quem não tinha nada a perder, a não as amarras da exclusão e do peso da injustiça sobre os ombros de pais e mães que estavam ali dispostos a arriscar a própria vida pela chance de um futuro digno a seus filhos. Eram homens e mulheres que optaram pelo risco do embate, pois, a eles e elas, a vida não ofertava outra coisa, se não, o dilema de pagar o aluguel ou dar de comer a si e aos seus.
Com vocês, aprendi que por mais que a gente imagine, saiba ou entenda a dor e a revolta sentidas por quem é jogado à margem da sociedade, e por ela ignorado em seus mais básicos direitos, é preciso viver, testemunhar e compartilhar momentos, sentir o cansaço pesado do corpo, o calor insuportável de quem fica embaixo de lonas pretas, sentir a poeira na garganta e em cada poro na pele, um suor que não cessa e que gruda a roupa no corpo, beber da mesma água com cheiro e gosto duvidosos, sentir o frio penetrar nos ossos quando o inverno chega e se servir da mesma comida dividida igualmente.
Apesar de nunca ter duvidado da justeza da luta de vocês, participar dela fortaleceu meus ideais, me alimentou de argumentos quando questionado por quem tinha a lei ao seu lado e se negava a enxergar o óbvio. Participar dessa luta fortaleceu em mim a capacidade de, nas conversas travadas com quem tinha a caneta na mão, ter a lucidez de medir as palavras para não atrapalhar as negociações e não perder os poucos espaços conquistados.
Com vocês, vi muita gente desistir no meio do caminho, tamanha era a precariedade do dia-a-dia. Aliás, dificultar a vida em termos de saneamento, lixo, transporte, escola e luz elétrica, entre outras coisas, foi a forma encontrada pelos “poderosos de plantão” para que vocês desistissem. Não conseguiram. Mas como vocês, não julguei e procurei entender quem não ficou, pois as razões deles eram tão legítimas quanto as que justificaram outros a continuar.
Com vocês, recolhi doações dadas por vizinhos que, sensibilizados pela situação desumana enfrentada, o faziam escondidos por temerem represálias. Juntos recebemos e acolhemos famílias que viam ali a chance de terem um pedaço de chão para pisar e um teto para morar. A cada chegada o sentimento era de soma, de união.
Nesses 30 anos, desde aquele 7 de dezembro de 1991, muito se conquistou. Às vezes mais, às vezes menos, a depender de quem estivesse nos espaços de decisão. Coincidentemente, os maiores avanços aconteceram com nomes como Olívio, Tarso, Lula e Dilma, em cujos governos os movimentos populares disputaram e conquistaram espaços importantes. As nossas gestões na Prefeitura também se empenharam e conseguiram dar início a uma grande transformação na região. Me orgulho muito, entre outras ações, dos investimentos e obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), da construção da Escola Adelmo Simas Genro e por ter transformado a outrora “Região dos Sem-Teto” em um bairro oficialmente constituído e respeitado na nossa Santa Maria.
Mas muito ainda precisa ser feito. Hoje a Nova Santa Marta é o lar de cerca de 30 mil pessoas, população maior que a de 263 cidades gaúchas, mas sem o equivalente em saúde, educação, saneamento básico e mobilidade urbana necessários. Ou seja, a mobilização não pode parar.
A paixão de vocês nessas últimas três décadas encheu de esperança a vida de muita gente, a minha inclusive, e tem sido um marco na história de Santa Maria e um exemplo a ser seguido por quem acredita na transformação da realidade a partir da força do movimento popular.
E por isso, eu, que me considero praticamente um vizinho de vocês, pois moro há mais de 30 anos na Cohab Tancredo Neves, na Região Oeste do “Coração do Rio Grande”, não quero ficar de fora da luta e registro aqui, nesta singela carta, o meu compromisso permanente de seguir apoiando a busca por mais dignidade, cidadania e inclusão.
Um grande e fraterno abraço!
Valdeci Oliveira, deputado estadual (PT-RS)
(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. Também é 1º Secretário da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa e Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Duplicação da RSC-287.
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