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Parte 3. O corpo moldado – por Elen Biguelini

A articulista e mais um momento histórico do regramento do corpo feminino

O corpo perfeito para o século XIX era natural e dentro da norma, sendo um corpo dócil, pois podia ser manipulado para que se tornasse ideal. As práticas de normatização visavam o alcançar através de técnicas disciplinares que universalizam os corpos. Elas surgiram ao longo do século XIX, e fazem parte daquilo que Foucault demonstra em seu “Panóptico”.

As técnicas de disciplina são longas e de maturada execução. São extensas e se baseiam em uma igualdade. “A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica para transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações” (FOUCAULT, 1986, 133). Aqueles que fogem do padrão esperados tem que ser corrigidos de forma a se encaixarem naquilo que é esperado.

É assim que funcionam até hoje as escolas e instituições militares. O corpo modelado pela escola não é um corpo excepcional, ele deve ser na medida, ou seja, a escola não forma pessoas diferentes, ela apenas ensina a medida, o que a norma considera como natural.

Mas mesmo que haja um projeto de universalização, as diferenças de subjetividade acabam não permitindo esta universalidade, logo, a disciplina nunca é completa. O foco das técnicas disciplinares é encontrar o diferente tanto através do olhar que não deixa nenhuma área obscura, quanto do exame. Através do olhar se percebem os detalhes.

O corpo feminino, por sua vez, também é olhado pela sociedade com esta idealização. Cada período tinha um corpo feminino ideal, que evolui e se modifica de acordo com os padrões de gênero de uma sociedade. Até o século XVIII a medicina via ambos os sexos como um só. O modelo do sexo único era baseado em conhecimentos da antiguidade (Aristóteles, Galeno, etc).

Segundo este modelo o “Homem” é um ser que compartilha algumas características com outros animais, mas ele estaria em uma posição elevada na cadeia dos seres. E este Homem seriam os membros da espécie humana, mas do sexo masculino. A mulher viria logo abaixo. Para Aristóteles não havia diferença no corpo do homem e da mulher, mas o corpo da mulher era uma versão imperfeita do corpo masculino, por ser mais frio.

Desta forma, os corpos hermafroditas eram mais facilmente compreendidos pela sociedade quando o modelo do sexo único era seguido. Isto ocorria, pois através da existência de um só sexo, para o qual a mulher apenas não evoluiu o suficiente para externar seu falo, este processo de “externação” torna-se plausível e natural.

Mas a partir do momento em que este corpo passou a ser compreendido como a mistura entre os dois sexos naturais, estes corpos passaram a ser considerados como O diferente, sendo então incluídos na lista daqueles que são excluídos da normalidade: o “anormal”, o “monstro”.

Neste modelo, tudo o que tem no corpo do homem também existe no corpo da mulher, mas ela não conseguia externar os órgãos masculinos. É devido a isso que as denominações do corpo da mulher eram simplesmente o nome de um órgão masculino, adicionado de feminino: o falo invertido era a vagina, os testículos femininos os ovários. A terminologia especifica feminina só surgiu a partir do momento que esta teoria do sexo único perdeu seu espaço para um novo modelo, o dos dois sexos. Com o modelo dos dois sexos, então, as diferenças entre um corpo masculino e um corpo feminino foram percebidas.

Desta forma, o gênero passa a ser dependente do sexo e o sujeito passa a se definir a partir deste sexo. A diferença sexual foi, então, elevada; sendo que os anatomistas dos séculos XVIII e XIX procuravam o sexo em todos os lugares. Este discurso, assim como o discurso de raças, passou a aumentar ainda mais as diferenças entre os seres humanos.

Assim, foi criada uma idealização do corpo, em especial do corpo feminino, que o molda dentro de espartilhos.

As mulheres viviam, então, fechadas dentro de um ambiente que era então exclusivo delas: o lar. É durante o século XIX que a distinção entre público – masculino e privado – feminino tornou-se tão exacerbada a ponto de designar regras tão rígidas para a feminilidade que não permitiam que mulheres solteiras caminhassem sem um acompanhante da família, ou seu noivo, por exemplo.

Todas as minúcias do corpo feminino eram regradas. O busto deveria ser contido, deveria estar sutilmente perceptível no vestido, mas se uma moça mostrasse muito deste, seria considerada coquete (ou imoral). A saia deveria ter diversas camadas e terminar na altura correta. As mangas deveriam seguir a moda: curtas no verão para que o calor não fizesse mal; longas no inverno para esconder os braços. Os espartilhos deveriam ser amarrados, por vezes tão fortemente que modificavam eternamente o corpo (como as calças de quadril baixo fizeram com as adolescentes durante os anos 2000, mas de uma forma muito mais extrema). Ninguém poderia ver o corpo nu. Este foi sempre tabu e, em um momento no qual a sexualidade era vista com maus olhos, não poderia ser acessado com facilidade.

LAQUER, Thomas. “A invenção do sexo”. São Paulo: Relume Dumará, 2002.

FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir”. Petrópolis : Vozes,

VIGARELLO, Georges. Panóplias Corretoras: balizas para a história. In. SANT´ANNA, Denise. “Políticas do Corpo”. São Paulo : Estação liberdade, 1995.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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