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Nações e Nacionalismo nas tensões entre Rússia e Ucrânia – por Leonardo da Rocha Botega

Uma forma de entender e explicar o episódio que chama a atenção do Mundo

O que é uma Nação? Mais uma vez a antiga pergunta proposta pelo intelectual francês Ernest Renan, em sua célebre conferência de 1882, volta à tona. Justamente em um momento onde as contestações sobre as identidades e as fronteiras nacionais tornam-se pano de fundo para as disputas entre os governos da Ucrânia e da Rússia. Uma grande ironia para muitos intelectuais e ideólogos que décadas atrás propagavam o fim das nações e dos nacionalismos diante da globalização e da produção do território de uma Aldeia Global.

Em discurso proferido na última segunda-feira (21/02), o presidente russo Vladimir Putin subiu o tom em relação aos conflitos e as tensões que envolvem diretamente os dois países e indiretamente os interesses dos Estados Unidos. Foram aproximadamente trinta minutos de uma fala que, entre outras afirmações, procurou descaracterizar um dos pontos mais fortes do discurso que vem sendo utilizado pelos grupos nacionalistas, alguns reconhecidamente neonazistas, que dão sustentação ao governo ucraniano: a identidade nacional.

A antropóloga cultural Katherine Verdery, uma das mais respeitadas estudiosas dos fenômenos nacionalistas, defende a tese de que a Nação é um símbolo que opera num vigoroso sistema de classificação social. É um mecanismo de triagem e identificação de grupos sociais. Um definidor das modernas cidadanias e um legitimador dos Modernos Estados Nacionais.

É a partir da ideia de Nação que movimentos nacionalistas criam um discurso homogeneizador, diferenciador ou classificatório, que é utilizado politicamente na produção de um sentimento que legitima a existência de um Estado como uma promessa de autonomia e bem-estar para aqueles que a ele pertencem.

Em 1993, em um texto intitulado “Para onde vão a ‘nação’ e o ‘nacionalismo’?”, Verdery chamava atenção para o fato de que essa ideia inicial de Nação, que emergiu a partir do Século XVIII, vinha cada vez mais perdendo força. Porém, diferentemente dos entusiastas da globalização, destacava que os novos nacionalismos não estavam mais voltados para a produção de uma identificação coletiva, mas sim, para identificações parciais e sectárias produtoras de uma relação direta entre a nação e a pessoa, recheadas por estereótipos étnicos, racistas e xenofóbicos.

Verdery é uma das mais significativas estudiosas da História do Tempo Presente no Leste Europeu. Suas conclusões na época, carregadas de um “cauteloso pessimismo”, conforme definiu Benedict Anderson, se baseavam na realidade que vinha sendo vivenciada no próprio leste europeu pós-socialismo real. Uma realidade onde grupos sociais perdiam suas identidades e garantias coletivas na transição para um modelo de sociedade neoliberal hiperindividualista e hipermercantil.

Deste processo de destruição de identidades nacionais promotoras de sonhos igualitários, brotavam novas concepções de identidades nacionais propagadas por grupos xenófobos, racistas, neofascistas e neonazistas. Grupos que ao longo dessas primeiras décadas do século XXI ganharam peso político, chegando ao poder na Hungria e na Polônia e participando diretamente no Golpe de Estado que depôs o governo pró-russo na Ucrânia em 2014, com apoio indireto dos Estados Unidos. Em reação a esses grupos é que algumas regiões ucranianas de maioria étnica russa, com apoio do governo Putin, têm buscado a sua independência em uma Guerra Civil que, em momentos de maior ou menor intensidade, se propaga ao longo dos últimos oito anos.

Obviamente, as questões de geopolítica, dos conflitos sobre o domínio global em um mundo que transita de uma ordem unilateral hegemonizada pelos Estados Unidos para uma nova ordem de partilha de poder, tem um peso considerável. A tentativa de ingresso da Ucrânia na OTAN tem forte relação com esse fator. Porém, esse não é o único fator.

Se não direcionarmos um dos olhos de nosso binóculo analítico para o peso que os novos nacionalismos, xenófobos, racistas, neofascistas e neonazistas, tem no mundo atual, sobretudo no leste europeu, poderemos estar sendo caolhos, utilizando apenas o olho ocidental para entender um conflito profundamente complexo e repetindo somente a visão do interesse estadunidense sobre o conflito.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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4 Comentários

  1. Nesta vem a ‘esta defendendo o Putin’. Obvio que não. Questão é não ter dois pesos e duas medidas. Iraque está melhor ou pior? Afeganistaão? Siria? Libia? Intervenções externas mal feitas pioram a situação. Dá sempre errado? Não, intervenção francesa no Mali parece ter sido bem sucedida. Pareceu a Guerra da Indochina de novo, só que desta vez funcionou. Sim, o Estado Islamico está espalhado por toda a Africa. Pior, quando aparecem com caminhonetes novinhas significa que alguém está financiando. Resumo da ópera: não tem santo, todos tem seus ‘interésses’, tanto lá como aqui.

  2. Russia teve uma breve janela de democracia entre a queda da URSS e a ascenção de Putin. Caos. Uma hora ele sai, mas ninguem espere uma democracia no estilo ocidental, mais facil algo parecido com a China. Noutro dia, sucessivas vezes, Biden, o zóinho, declarou ser iminente a invasão. Errou. Putin reconhece independencia de parte da Ucrania. Para não ficar feio mostram imagens de meia duzia de tanques e caminhoes se deslocando não se sabe onde. Primeira vitima de uma guerra e a verdade, nao iriam concentrar centenas de milhares para cruzar a fronteira com meia duzia de gatos pingados. Ataques cibernetico ficaram em segundo plano. Sanções economicos. Resposta bombardeios. Escalada. ‘Especialistas’ pululam, querem achar a bala de prata que explica tudo, ‘é economico’ alguns afirmam. Tem emissora catando imagens na internet e mostrando clips de videogame, cairam nesta. Como se sabe? Porque a aeronave que ataca é americana e não russa.

  3. Americanos, a nação americana, está rachada como nunca antes. Os discipulos de Marcuse conseguiram a proeza. Os mesmos do ‘nascimento de uma nova consciencia revolucionaria através da coalizão dos excluidos’. Vem duas guerras de 20 anos. Numa delas invadiu um pais soberano sob o falso pretexto das armas de destruição em massa. Democratas voltaram ao poder e o problema da Ucrania que estava em banho maria voltou para a chapa quente. Negócio é exportar democracia, promover idealismos e encher os bolsos no processo.

  4. Para começo de conversa ‘xenófobos, racistas, neofascistas e neonazistas’ é mais uma rematada cascata. Russos comemoram todo8 9 de maio a vitoria contra os nazistas. Vermelhinhos chamam todos os que não concordam com eles dos mesmos qualificadores. Segundo, a realidade não tem compromisso nenhum com teses academicas. Grande parte da população brasileira não tem interiorizado o conceito de nação. Não é nação, ao menos na pratica, não se encaixa no conceito. Então é outra coisa, o conceito não se aplica. Simples.

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