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A sádicocracia brasileira – por Leonardo da Rocha Botega

Sobre tortura e aquele filho: “quem goza com a dor alheia tem nome: sádico”

“Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.”

O relato acima foi feito pela jornalista Miriam Leitão, presa pela Ditadura Civil-Militar em 03 de dezembro de 1972. Na época Mirian tinha 19 anos, trabalhava na rádio Espírito Santo e estava grávida de um mês. Foi capturada, juntamente com seu companheiro Marcelo Netto, quando se direcionavam para um domingo de lazer na Praia do Canto em Vitória. Acabaria, como ela mesmo relata, presa e torturada na Prainha, local onde fica o Forte Piratininga, sede do 38º Batalhão do Exército.

Falo aqui de Miriam, mas poderia falar também de Rose Nogueira, de Amélia Telles, de Iracema de Carvalho Araújo, de Araceli Cabrera Sanchez Crespo, de Dinalva Oliveira Teixeira, de Aurora do Nascimento Furtado ou de Dilma Rousseff. Mulheres que passaram pelo martírio da tortura, das sevícias, das ameaças ou dos estupros, algumas inclusive viram seus filhos e filhas serem usados como instrumentos de tortura psicológica. Outras, como Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dora, teve sua subjetividade destruída a tal ponto que não conseguiu seguir a vida no exílio, acabou se jogando na frente de um vagão de trem na estação de Neu-Westend do metrô de Berlim.

A tortura, conforme a Enciclopédia Jurídica da PUC-SP, “é, por definição médico-legal, um meio cruel de prática criminosa, entendido como ato desumano, brutal, que atormenta e causa padecimento desnecessário à vítima, por livre deliberação do torturador”. Seu objetivo é a desumanização do ser humano torturado, a redução deste a um objeto cuja subjetividade é destruída levando-o a submissão total ao torturador. Uma prática antiga e que ao longo da História foi utilizada para diferentes fins, normalmente por agentes do próprio Estado.

O instrumento da tortura passou a ser questionado pela humanidade desde a Revolução Francesa e foi ganhando status de condenação na comunidade internacional durante o Século XX. Em 1984, a  Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, onde os países signatários se comprometem a tomar “medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição”. Tal convenção foi ratificada pelo Brasil em 28 de agosto de 1989.

Porém, mesmo sendo o país signatário da Convenção contra a Tortura, essa nunca foi totalmente extinta como prática corriqueira do Estado brasileiro. A organização não-governamental de defesa dos direitos humanos, Human Rights Watch, em relatório recente atestou que em média seis pessoas são torturadas diariamente por agentes do Estado no Brasil. Segundo o órgão, “mais do que uma herança da ditadura militar, a tortura é uma herança da impunidade”, uma vez que “o agente sabe que não será punido, por isso tortura”.

A impunidade permite a tortura e sua derivação a apologia à tortura. A apologia à tortura está muito ligada a questões como o racismo estrutural, a violência de gênero, a lgbttfobia e a aporofobia. Representa uma cultura que foi extremamente empoderada nos últimos anos, quando a defesa da Ditadura Civil-Militar passou a ser normalizada por setores significativos do próprio Estado brasileiro que relativizaram, a partir de interesses da luta política, os marcos constitucionais que afirmam a defesa e a apologia de tal regime e da tortura como crimes.

O então deputado que virou presidente, quando dedicou seu voto favorável ao golpe (disfarçado de impeachment) contra a presidenta Dilma Rousseff, ao homem que a havia torturado, deveria ter saído preso daquela sessão. Não foi! O Poder Judiciário deveria ao menos chamar para prestar esclarecimento o Ministro da Defesa, cada vez que uma Ordem do Dia é dedicada à apologia ao Golpe de 1964, falseando a História. Não o faz!

É por isso que figuras como o deputado, filho do presidente, se sente seguro para, estupidamente, “debochar” da jornalista Miriam Leitão a partir de um dos seus maiores traumas: a tortura sofrida nos porões da Ditadura. Quem goza com a dor alheia tem nome: sádico. Um governo que tolera e utiliza a apologia à tortura como prática discursiva pode muito bem ser definido como uma “sádicocracia”. Um governo onde a intolerância e o desejo por exterminar o outro são a regra. Como bem escreveram Adorno e Reich, boa parte do fascismo se compõe de sadismo. Temos sempre que lembrar que os sádicos são (e sempre serão) uma ameaça à sociedade democrática. Tortura nunca mais! Apologia à tortura é crime!

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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2 Comentários

  1. O que leva a outro assunto. Molusco com L. em evento da CUT (ou seja, sindicatos eventualmente cuidam dos interesses dos trabalhadores, mas é secundário) afirmou que trabalhadores e movimentos sindicais devem “mapear endereços” das casas dos deputados e enviar “50 pessoas” para “incomodar a tranquilidade”. ‘Não é para xingar não, é para conversar com ele, conversar com a mulher dele, conversar com o filho dele […]’. Resumo é que ‘vamos chamar os outros de fascistas para não desconfiarem de nos’.

  2. Declaração a respeito de Mirian Oinc Oinc foi uma provocação. Obvio. Serve para a polarização. O fato em si entrou para a historia e quem questonar alguém na rua vai descobrir que esta longe da preocupação de grande parte da população. Existe uma montanha de papeis afirmando que é proibido torturar, teses academicas inuteis (dinheiro jogado fora), tribunais, ONG’s, etc. Deve acontecer por aí e, eventualmente, pegam alguém ‘para exemplo’. No mais, Xandãos à parte, a CF88 estatui que ‘Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.’ Não existe ‘mas’, ‘porem’, ‘todavia’. Para quem é suficientemente alfabetizado não é necessario explicar. Dai vem o aspecto politico/ideologico (e eleitoral). Palavras não são ações.

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