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Democracia em tempos de cólera – por Orlando Fonseca

“Como se vê, o caminho na busca da felicidade ... está cada vez mais inseguro”

Sem dúvida, aos mais atentos não escapa que estamos vivendo momentos históricos muito estranhos. A estas alturas do processo civilizatório, deveríamos estar nos ocupando com coisas mais elevadas, relativamente à condição humana. No entanto, pra variar, como diz a canção, estamos em guerra, e os valores democráticos – para estabelecer um parâmetro – cada vez mais tênues. Os sintomas estão perigosamente próximos.

Não bastasse o que vimos recentemente no Brasil, com a intentona fascista do 8 de janeiro, agora, uma invasão à embaixada mexicana no Equador põe em risco os valores sobre os quais se constroem as noções de república e de estado democrático e de direito. E isso é uma longa jornada, desde os gregos na antiguidade, passando pela independência dos EUA, a revolução francesa e o colonialismo. Enfim, tem sido um processo custoso para que venha abaixo assim, com novas narrativas baseadas no negativismo e na pós-verdade.

Baseado na solidez das instituições democráticas do país, recentemente o ex-presidente Bolsonaro procurou abrigo na embaixada da Hungria. Ficamos sabendo porque deu no New York Times e, mesmo que o indigitado tenha dito que foi ali conversar com os amigos (o presidente daquele país é da extrema direita) não resta dúvida de que temia ser preso, após as revelações que vieram à tona com as investigações da Polícia Federal.

Por ironia, dentre os processos em curso, um é o que procura a sua responsabilidade nos atos golpistas que seus correligionários perpetraram em janeiro do ano passado. Seu inconformismo com a derrota é que tem levado muitos de seus simpatizantes a pôr todo o edifício da democracia brasileira abaixo. E é justo este o ponto que me põe em alerta, porque os sistemas, os protocolos, os códigos são narrativas, não são limites sólidos. E como preconiza a proverbial sentença marxista: tudo que era sólido desmancha no ar.

Nas repercussões sobre o ataque à embaixada do México, o próprio presidente Obrador do país agredido, mencionou que “nem nas ditaduras se viu uma invasão desse tipo”. Lembrei do filme do cineasta gaúcho, Paulo Nascimento, recentemente lançado em sessão no Teatro Treze de Maio.

No longa “Ainda somos os mesmos”, temos o registro de cidadãos que ocuparam a embaixada brasileira no Chile, no início dos anos Pinochet. Ainda que o exército tivesse perpetrado um golpe, não ousou invadir o prédio, e ainda, com um indulto da ONU, todos puderam ser retirados e seguirem até o aeroporto e daí para o asilo em outros países (lembremos que o Brasil também vivia um ditadura ferrenha).

O problema é que sociedade, república e democracia, em essência, tudo não passa de palavra, como as que estabelecem as regras do jogo. Nesse se estabelece um território imaginado no qual vale o que se concerta entre os jogadores. Segundo Huizinga (historiador holandês), é como vive o “homo ludens” na realidade cultural. Por suposto, as abstrações dos valores, na convivência em sociedade, sustentam-se na subjetividade coletiva. Mas isso é frágil, seguindo a tese de Bauman (o da modernidade líquida), fluida, a sociedade, ao mesmo tempo em que se transforma, também enseja movimentos para a sua deturpação.

Como se vê, o caminho na busca da felicidade (um dos objetivos da civilização e da democracia) está cada vez mais inseguro. Quando o presidente Lula resolveu se entregar à polícia federal (e não pedir asilo em uma embaixada, como lhe sugeriam os companheiros), em abril de 2018, sabendo-se inocente em relação ao que lhe era imputado, declarou que o fazia por considerar sólidas as bases na justiça brasileira, e que essa iria prevalecer.

A meu ver, esta é a condição para que se construa a narrativa da segurança, em tempos da cultura do ódio e do negacionismo: o respeito aos direitos individuais e a consonância com os códigos e protocolos sobre os quais se construiu a democracia como a vemos na atualidade (ainda que, perigosamente, questionada).

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.

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9 Comentários

  1. Cereja do bolo, Xandão coloca Elon Musk no inquerito das milicias digitais. Inquerito eterno aberto de oficio. Alas, tem o ‘ministerio da verdade, o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia. Resumo da opera: os que mais falam em ‘democracia’ são os que mais a desrespeitam.

  2. O que leva ao ‘Twitter Files Brazil’. Divulgado la fora. Revelou o que todos ja sabiam. Comunicações entre o judiciario e os dirigentes do então Twitter. Bastaria usar uma hashtag para ter sua vida devassada. Censura de postagem de parlamentares. Exigir ‘moderação’ das publicações dos apoiadores do Cavalão Molestador de Baleia.

  3. ‘[…] para que se construa a narrativa da segurança, em tempos da cultura do ódio […]’. E quem define o que é ‘discurso do ódio’? Os vermelhos? O Xandão? Os ‘super bem intencionados’ querem o totalitarismo. O ‘establishment’ não suporta ser questionado, indicio de fraqueza.

  4. ‘[…] sabendo-se inocente em relação ao que lhe era imputado, […]’. Sim, ele acha que é inocente. Kuakuakuakuakuakua! E o liquido na garrafinha do comicio antes da cadeia era agua! Kuakuakuakuakua!

  5. ‘[…] o caminho na busca da felicidade […] está cada vez mais inseguro.’ Felicidade é algo subjetivo, não é algo ‘coletivo’. Menos na Coreia do Norte e em Cuba onde todos são ‘felizes’.

  6. “nem nas ditaduras se viu uma invasão desse tipo”. Invasão da embaixada americana na queda de Saigon. Ocupação da embaixada ianque em Teerã com diplomatas mantidos refens por mais de um ano.

  7. ‘[…] ecentemente o ex-presidente Bolsonaro procurou abrigo na embaixada da Hungria.’ Existe grande probabilidade de ter gravado o video convocando a manifestação da Avenida Paulista dentro da embaixada. Rede Bobo produziu material detonando o primeiro ministro daquele pais (primeiro ministro fica no poder enquanto tiver maioria no parlamento). Midia internacional já produzio reportagens de manifestações (com os truques usuais para dar impressão de ter mais gente que o anunciado. Há quem diga que preparam uma ‘revolução colorida’ na Hungria, parecida com a que o Departamento de Estado Ianque retirou um governo pró-Russia na Ucrania e colocou um governo pró-Otan.

  8. ‘ E isso é uma longa jornada, desde os gregos na antiguidade,[…]’. Isto é fake news. Basta ler a historia da guerra do Peloponeso, Atenas invadindo a Sicilia para (grosso modo) implantar governos ‘alinhados’ a troco de ‘modicos’ tributos.

  9. ‘[…] estamos vivendo momentos históricos muito estranhos. A estas alturas do processo civilizatório, deveríamos estar nos ocupando com coisas mais elevadas, relativamente à condição humana.’ Resposta é simples, ‘muito estranhos’ poque a realidade não tem nenhum compromisso com o ‘processo civilizatorio’. O ‘idealismo’ de alguns levou a considerar que a humanidade ‘evolui’ do primitivo para o ‘civilizado’ com metas marcadas na folhinha (dai o ‘deveriamos estar’). Problema é que se trata de ideologia. Que gerou ‘expectativas. Que sem ‘ancora’ na realidade restaram frustradas. Simples assim.

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