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O que é gênero e por que não existe “ideologia de gênero” – por Elen Biguelini

Muito antes de cair no (des)gosto de conservadores, o termo “gênero” passou a ser usado por feministas para descrever aquilo que a sociedade espera de um determinado sexo.

Reza a lenda que nos idos de 1990 uma determinada universidade americana convidou como ilustre fala principal Judith Butler, para falar sobre “gender”. Esta aceitou com muito gosto, mas logo pergunto: “e o que seria isto, gênero?”. As professoras ficaram todas confusas. Ora, o conceito de gênero fora cunhado pela própria Butler, anos antes.

Ou seja, desde sua criação o conceito causava debates.

A obra de Butler surge em um momento em que o movimento feminista questionava a si próprio, uma época de cisão entre o movimento estado unidenae e francês, e no qual surgiram outras formas de pensar a situação das mulheres. Foi neste momento que outras autoras como bell hooks (em minúscula, por desejo da própria autora) questionaram a falta de vozes diferentes dentro do movimento. Como podemos dizer que defendemos as mulheres se a grande maioria destas é por nos calada? bell hooks questionou “Não sou eu mulher?”. Foi este questionamento, unido aos conceitos criados por Butler de gênero, performatividade e outros, bem como o surgimento da teoria Queer que permitiram o surgimento de um movimento feminista mais igualitário, como este que a Quarta Vaga ou Onda feminista almeja ser.

Mas trataremos de hooks e da teoria Queer em outra ocasião, o foco aqui recai sobre o conceito de gênero.

O que seria então este bicho de quatro cabeças?

Nada mais do que a concepção de que aquilo que é esperado de um determinado gênero é imposto pela sociedade. Os ideias de feminilidade variam com os séculos, mas sempre comandam “o que é ser mulher” em determinada data. O mesmo se faz com a masculinidade.

A historiadora Joan Scott escreveu um magnífico e determinante artigo que auxilia a compreensão deste conceito, ao defini-lo como categoria de análise histórico, visto que ao observá-lo como algo que varia com o tempo, podemos conceber que a sociedade como um todo é moldada por algo que é construído socialmente. Ser mulher e ser homem dependem de quando e onde alguém se encontra.

Isto auxilia em muito a história das mulheres (e dos homens) pois permite compreender atitudes e mesmo interpretações de atitudes em determinados períodos.

Cabe adicionar que, após compreendermos que o que é imposto aos gêneros feminino e masculino é imposto socialmente, podemos conceber que há, então, todo um espectro do que pode ser definido como um ou outro. Assim, por mais que sejam dois opostos, há toda uma gama de possibilidades.

O que isto significa? Que uma pessoa pode se identificar com um ou outro gênero em determinado grau, ou com nenhum. Cada pessoa se identifica com o que é esperado pela sociedade de determinada forma. A articulista gosta de cor-de-rosa, mas gosta também de azul, e também de roxo e lilas –, por exemplo. O simples escolher rosa como cor feminina é extremamente recente.

Lembremos, cores não tem sexo. O que elas têm é uma interpretação social que as relaciona a determinado gênero.

Por que então se fala em “ideologia de gênero”?

Bem, quando não se compreende algo, este algo é frequentemente transformado em vilão. E o conceito de gênero nunca foi compreendido pelos conservadores que não percebem que tudo o que eles consideram correto hoje, um dia foi desviante, visto que a sociedade se modifica ao longo do tempo.

Não há “ideologia de gênero” porque gênero não é um pensamento, uma veia filosófica, uma opinião formada sobre determinado assunto. Não é uma forma de olhar o mundo, não é uma compreensão do mundo. Gênero é um conceito que foi criado para permitir a melhor compreensão da sociedade. É uma palavra como qualquer outra, que auxilia um jovem a se compreender. Assim como “rebelde”, “carente”, “amigável”. Assim como “forte”, “brincalhão” ou “carente”.

O gênero de uma pessoa não pode ser imposto, e cada um pode se definir dentro de um espectro de possibilidades. A articulista se define como mulher, gosta de rosa, usa vestidos. Mas isto não impede que outrem, que prefira marrom e vista calças também se defina como tal. Quem decide o que é, é a pessoa em si, não a sociedade.

Para ler mais
‘Género’. in MACEDO, A. G.; AMARAL, A. L. (orgs.). Dicionário de Crítica Feminista. Porto: Afrontamento, 2005, 87-88.
BUTLER, J. ‘Variações sobre sexo e género. Beauvoir,Wittig e Foucault’, in. CRESPO, A. I. (org). Variações sobre sexo e género. Lisboa: Livros Horizonte, 2008, pp. 154-170.
DUBY, G; PERROT, M. (coord.). História das mulheres no ocidente. Porto: Edições Afrontamento, 1991.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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4 Comentários

  1. O que tem a ver com ESG? Mulheres em postos chaves, contratação de mais pessoas do Alfabeto (LGBT antigamente, a sigla muda toda hora). Funcionáries da Disney fizeram uma passeata dizendo que o CEO da empresa demorou a criticar a legislação e que a cia deveria se empenhar contra a nova lei. O que gerou um boicote e um festival nas redes sociais dos mais conservadores.
    Cereja do bolo foi um video interno vazado, no qual a diretora Latoya Raveneau fala que a liderança da Disney tinha sempre recebido bem a ‘não secreta agenda gay’ dela. O que leva ao conteudo audiovisual produzido na mesma empresa. ‘Contar uma historia’ é secundário. Ao inves de entretenimento o importante é sermão ideologico ou representatividade hoje em dia. Mulheres masculinizadas/androginas, homens bobalhões/problematicos com uma mulher para ‘resolver os problemas’ do lado. Tudo isto já bate no bolso. Acionistas da Disney já acionaram o Conselho de Administração, avisaram o CEO para ‘promover agendas’ mas não com o dinheiro deles.

  2. O que leva a outro assunto. ESG, governança social e ambiental das grades empresas. E a Guerra Cultural nos EUA. Corporações decidiram que estavam cuidando muito do ambiental e pouco do social. Há estudos, não se pode determinar a seriedade do mesmos, que afirmam que as ações das empresas com boa ESG tem menor volatilidade e melhores retornos. Nas empresas de entretenimento os efeitos não foram bem os esperados. Na Florida passaram uma lei chamada de ‘Lei dos direitos dos pais na educação’. A esquerda prontamente apelido de ‘Lei Não diga Gay’. Segundo o estatuto, é proibido instrução abordando orientação sexual ou identidade de genero do jardim da infancia até a terceira série nas escolas publicas. Proibe instrução sobre orientação sexual ou identidade de genero de maneira não apropriada para a idade ou desenvolvimento para os estudantes. Escolas não podem negar informações para os pais a respeito do bem estar mental, emocional ou fisico dos estudantes. Obviamente ninguém acorda num belo dia e resolve passar este tipo de legislação do nada.

  3. É um caso extremo, mas ilustra bem o argumento. Primeiro carteiraço ‘doutor em Antropologia’. Segundo carteiraço: ‘sou especialista por Harvard’ (este era frio, o diplima no maximo era de um curso de extensão; acontece nas melhores familias, inclusive na urb). O busilis é ‘opinião fundamentada em ciência’. Ficar repisando Gramsci ou Marcuse é muito árido. Mas o diagnostico é simples, militantes de esquerda infiltraram a academia e querem utilizá-la para impor seus conceitos e valores à sociedade. Sem juizo de valor, hoje é genero, amanha o que será? Joseph Mengele era doutor em Antropologia pela Universidade de Munique. Trabalhava no Instituto de Biologia Hereditária e Higiene Racial da Universidade de Frankfurt onde virou médico. Na antiga URSS é possivel observar os problema causados pelo Lysenkoismo (que corre solto por ai, foi esquecido pela maioria). Resumo desta ópera: academia não é feita para determinar o que a sociedade deve ser ou deixar de ser. Observação e critica sim, desde que feita com qualidade.

  4. Quem lê tem a impressão de ser uma coisa inocente. Aconteceu um quiprocó numa escola de luxo no sudoeste noutro dia. Alguém teve a brilhante ideia de levar Sonia Guajajara, uma militante do PSOL, para palestrar. Paramentou-se com trajes tradicionais apesar de, segundo consta, ser formada em letras e enfermagem. Todos se vestem como bem lhe aprouver, mas a mensalidade da escola é 10 mil por mes (mais ou menos a mensalidade de um curso de medicina por aí). Foi um pedido para não ser levada a serio. Ela repetiu a cartilha da esquerda no que foi contrariada por um estudante. O professor afirmou o seguinte: “Deixa eu te dizer uma coisa, meu querido. Quando você entender o que é ser uma pessoa deste tamanho, você vai se lembrar deste dia com muita vergonha. (…) Então a minha recomendação é: me respeite, porque sou um doutor em Antropologia. Não tenho opinião, sou especialista por Harvard. No dia em que você quiser discutir com a gente, traga seu diploma e a sua opinião fundamentada em ciência, aí você discute com um especialista em Harvard”

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