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Quem tem fé, voa – por Leonardo da Rocha Botega

“Milton voou alto e com seu voo abriu espaço para toda uma nova geração"

Era um dia de visitas como qualquer outro na Casa de Detenção do Carandiru, Zona Norte de São Paulo. Seu Chico preparou uma barraquinha no centro do pátio. Arrumou uma mesa improvisada, coberta por uma linda toalha, bolo, refresco e sentou-se na espera de uma visita que nunca apareceu.

Passado o horário, recolheu tudo e retornou cabisbaixo a sua cela. Seu Chico fazia balões e sorria quando via-os voar para além dos muros do Carandiru. Sorria para a liberdade. Mas o que é a liberdade para quem só conhece a solidão e o abandono?

Algumas semanas depois, Seu Chico ganhou a liberdade. A espera solitária da visita se repetiu na esperança de uma recepção do lado de fora do portão. Nada! Ninguém! Nenhum rosto conhecido para orientá-lo diante de um mundo que mudou bastante desde seu ingresso na detenção.

Diante do sofrimento, da solidão e da angustia do abandono, em um quarto de pensão, Seu Chico preferiu a morte, esse fantasma que conforme Feuerbach “só existe, quando deixa de existir”. Seu Chico foi um dos tantos personagens que ganharam vida e emoção através do brilhantismo do ator Milton Gonçalves.

Milton Gonçalves, nascido na pequena cidade de Monte Santo, em Minas Gerais, foi um dos primeiros atores da TV Globo. De infância pobre, trabalhou como aprendiz de sapateiro, de alfaiate e de gráfico. Mas foi o Teatro, conforme suas próprias palavras, sua “grande salvação”. No palco, soube se libertar de todos os percalços que sofreu, sobretudo, do preconceito racial, o trauma de sua vida. Sofreu, lutou e rompeu barreiras na dramaturgia brasileira.

No longa “Rainha Diaba”, lançado em 1975, interpretou a transexual Diaba, personagem inspirado na icônica Madame Satã, nome artístico de João Francisco dos Santos, figura emblemática da boemia na Lapa carioca das primeiras décadas do século XX.

Não era fácil interpretar um negro, homossexual e marginalizado em plena Ditadura Civil-Militar. Tal ousadia lhe rendeu o Prêmio de Melhor Ator no significativo Festival de Brasília.

Milton Gonçalves também romperia estigmas e preconceitos na primeira versão da novela “Pecado Capital”. Na ocasião deu vida ao Doutor Percival. Pela primeira vez na dramaturgia brasileira um negro era retratado como um renomado e prestigiado médico.

Em tempos onde a discussão sobre representatividade ainda engatinhava, os negros e as negras brasileiras enxergaram um dos seus num papel de prestigio, uma raridade em um espaço onde normalmente são retratados como empregados, bandidos ou escravizados.

O ator, que se tornou um dos tantos símbolos do raiar da redemocratização brasileira no Movimento Diretas-Já, para além de suas brilhantes atuações, sempre foi um militante na luta pelo reconhecimento do trabalho dos atores negros e das atrizes negras.

Milton Gonçalves, que nos deixou no último dia 30 de maio, tinha uma fé inigualável no Brasil. Como dizia Zelão das Assas, personagem que Milton deu vida na novela “O Bem Amado” em 1973, “Quem tem fé, voa!”. Milton voou alto e com seu voo abriu espaço para toda uma nova geração. Sua luta foi fundamental para os novos ares de representatividade do povo negro que estão, ainda que lentamente, sendo gestados na televisão e no cinema brasileiro.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Nota do Editor: a foto de Milton Gonçalves, que ilustra este texto, é uma reprodução obtida na internet.

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