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Osmîa: uma rainha guerreira – por Elen Biguelini

Em finais do século XVIII, uma mulher ousou colocar uma obra se sua autoria em um concurso da Academia Real de Ciências de Lisboa. Sua obra era, então, anônima. Sua autora Teresa de Mello Breyner (1738-circa 1798) era conhecida pelos acadêmicos, tendo participado inclusive de sua fundação, mas isto não significa que era aceita por eles.

A autora galega Raquel Bello Vásquez lembra que a participação de mulheres em Academias, interferia com a sua imagem de castidade. Para a autora, “o papel das mulheres neste tipo de agremiaçons estava mui limitado na sua dimensom pública, e podia chegar a constituirse em uma causa de crítica contra aquelas que freqüentavam a Academia” (VASQUEZ, 2004b, 2 – Nota-se que o texto é em galego, logo o que parecem erros de escrita são, na realidade a forma da palavra na língua galega). A participação feminina não era proibida na Academia Real das Ciências, mas ainda assim, nota-se que Teresa de Mello Breyner não é mencionada no rol dos sócios da Academia.

D. Teresa se orgulhava dos objetivos e projetos da Academia Real das Ciências e de sua preocupação com a investigação e não apenas com a literatura. Também agradece o interesse da amiga pela instituição: “Eu te agradeço por toda ella [A Academia Real das Ciências de Lisboa], o enteresse, que mostras pelo seu progresso, e se os nossos costumes o permitissem tu certamente estavas na lista; mas as tuas Luzes são tais, que podem ajudala muito comunicalhas, que eu fico porq toda a boa gente que comprove se mostre agradecida”. (VASQUEZ, 2004 a, 96, Carta de janeiro de 1781. Nota-se que também aqui, como nas citações que seguem, foi mantido a grafia original).

Na carta acima, percebe-se o que a presença feminina nas listas de membros das Academias iria contra os costumes. Para um homem esta participação não é problemática, pelo contrário. Mas a reputação de uma senhora pode ser ferida com a presença de seu nome em algo tão público. A Condessa de Vimieiro escreve a sua amiga sobre o assunto lembrando que é heroico de sua parte participar de algo tão masculino: “mas p.a uma m.er no Payz em que eu nasci, e onde talvez se armaõ contra mim porque leio e porq’ vou à Academia sim he Eroismo; com tudo naõ terei valor p.a que se imprima em m.a vida, e como esta será /ao q’ promete/ de pouca duração, vossês choraraõ dobradam.te quando lerem o q’ lhe deixo escrito” (VASQUEZ, 2004 a, 173, Carta de 19 de junho de 1781).

Apesar de seus inimigos, D. Teresa de Mello Breyner percebe o valor de sua filosofia. Ainda assim, quando a Academie de Ciências propõe um prêmio para uma tragédia portuguesa, em 10 de maio de 1785, sendo que a premiação ocorreria 3 anos depois, enviou um texto anonimamente.

O prólogo da edição da Academia Real das Ciências de 1835, assim descreve o processo de escolha do texto: “Tres Tragedias vierão a concurso; huma intitulada D. Maria Telles, a segunda Lauso, e a terceira esta, que se dá ao publico. Depois de examinadas, julgou a Academia dignas de louvor varias Scenas da segunda, e os rasgos poeticos que de quando em quando nella se encontravão; mas que a terceira pela sua versificação mais igual, pela unidade da acção, e pelos caracteres das pessoas se conservarem fielmente até o fim da catastrofe, levava ventajem ás outras, e merecia o premio” (BREYNER, 1790, prólogo).

Osmîa fora, então o texto escolhido. Para recebimento do prêmio, foi aberto envelope com a autoria, mas ao invés do nome ou pseudônimo da autora, um bilhete: “Hum remédio para a ferrujem que damnifica as oliveiras, fundado no conhecimento da natureza do mal, confirmado pela experiencia, e que seja ao mesmo tempo practicavel sem grave despeza, nem excessivos cuidados” (BREYNER, 1790, prólogo).

O texto é uma obra épica sobre a história lusa, na qual uma jovem mulher luta contra os invasores romanos. A temática de Osmîa não era inédita. Manuel de Figueiredo também já havia feito um texto sobre o assunto, mas Teresa de Mello Breyner obviamente utiliza sua tragédia para demonstrar a igualdade entre homens e mulheres. Osmîa, a personagem título do texto e rainha portuguesa, é uma guerreira, fisicamente forte e inteligente, tendo lutado em uma batalha contra os invasores romanos de terras lusas.

Osmîa tenta defender os lusitanos, ainda que presa por um dos invasores. E, na voz de Eledia, sabia lusitana que auxilia a princesa:“Osmîa nos defende; o sangue illustre/ De nosso Capitães no seu conserva!/ Oh! Como em flor (Esposa lastimada!)/ Nossa longa esperança o fado arranca!” (BREYNER, 1790, 21). Ela é a esperança lusitana, clara referência a Rainha D. Maria I, a quem o livro é dedicado. Ainda assim, o contato com o povo romano causa medo a Eledia, que teme as roupas romanas que a princesa passa a usar durante o cativeiro:

“Osmîa. Ah! que de todo inútil /Este traje não he. Foi este o preço De te ver, cara Eledia, e de alcançar-te/ Por minha companheira, em quanto o Fado/ Do consorte animoso me separa.

Eledia. Pois intentão que os trajes Lusitanos / Troques pr essa pompa vergonhosa?/ Ah! Princeza infeliz! devêras antes/ Deixar-te perecer ao desamparo. (BREYER, 1790, 27).

Aderir aos trajes romanos significa para Eledia escolher o lado do inimigo, mas Osmîa defende que o fez a mandado daquele que a mantinha cativa em troca da companhia da sábia Eledia que a culpava justamente do contrário.

O esposo também se choca com a vestimenta de Osmîa, lendo na vestimenta um amor inexistente por Lelio, o que leva-o a grande fúria. O marido, Rindaco, some em meio ao embate com os romanos e a maior parte da tragédia se passa a espera dele, enquanto Osmîa está sob o cativeiro romano. No entanto, o chefe romano, Lelio, se apaixona por ela e pensa um dia poder levá-la a Roma, caso seu marido estivesse morto. Também Osmîa é culpada desta paixão, que existe apenas para o romano. A chegada de Rindaco leva a novo confronto, quando este ordena sua esposa que mate Lelio: ”Dá-me a prova tu mesma. Occulto ferro, /Osmîa, trago aqui, (b) toma, e repara… /Que hum Esposo aggravado de ti fia/ Huma vingança digna de ti mesma./ Chama o Pretor ( BREYNER, 1790, 66).

A paixão exacerbada, a raiva, fazem com que Rindaco, um bom governante, perca a razão e seja levado pelo ciúme. Matar o suposto amante é prova de sua lealdade e castidade. A personagem principal do texto é, na opinião de Raquel de Bello Vásquez, “uma rainha ilustrada mas absoluta, que se recusa a dever nada aos seus súbditos” (VASQUEZ, s.d., 164), sendo que os acontecimentos da tragédia se dão ao fato de que esta tem que obedecer ao marido, ainda que esse estivesse equivocado, obrigando-a a agir contra a razão (VASQUEZ, s. d., 168).

Ao obrigá-la a agir contra seu próprio entendimento, após um ciúme desnecessário, Rindaco acaba por causar sua morte. Aqui, então a personagem feminina é aquela que detém a razão, superior a paixão que leva aos erros. Também representante da razão é Eledia, que é chamada por Osmîa para aconselhá-la. Defensora da virtude da princesa lusitana, Eledia teme os trajes, mas é um medo desnecessário, pois Osmîa é uma governante ideal e sábia que não vai contra seu povo nem contra sua virtude.
Fonte: (Breyner, Teresa de Mello (1790) ). Osmîa. Tragedia de Assumpto Portuguez em cinco actos. Coroada pela Academia Real das Sciencias de Lisboa. Em 13 de Maio de 1788. Tipografia da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa.

Referências:
Vásquez, Raquel Bello. “Dá uma risada quando ouvires…” – transgressão e ocultamento em Teresa de Mello Breyner. in Toscano, Ana María da Costa; Godsland, Shelley. “Mulheres más. Percepção e Representaçôes da Mulher Transgressora no Mundo Luso-Hispânico”. vol1. Fundação Fernando Pessoa. pp. 159-175 [online] «https://espacioseguro.com/grupogalabra/images/stories/pdf/ raquel/novos/d%20ri sada_mulheres%20ms2.pdf» [22-06-2013]Vásquez, Raquel Bello (2004a). Lisbon and Vienna: The Correspondence of the Countess of Vimieiro and her Circle. Raquel Bello Vásquez. Portuguese Studies. Nº20. pp. 89-107. [online] «https://espacioseguro.com/grupogalabra/ images/stories/pdf/raquel/novos/lisbon%20and%20vienna_portuguese%20studie s2.pdf» [25-06-2013]Vásquez, Raquel Bello (2004b). Sociabilidade e aristocracia em Portugal no último quartel do século XVIII. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra. Setembro 2004. [online] «http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/ Raquel BelloVazquez.pdf» [24-06-2013].
Vásquez, Raquel Bello (2005). As versons ilustradas de Osmîa dous modelos de mulher, duas propostas sociais de classe. In Quadrant. nº22.2005. Univesité Paul-Valery, Montepellier III. [online] «https://espacioseguro.com/grupogalabra/ images/stories/pdf/raquel/novos/versons%20ilustradas%20Osmîa_quadrant%20 222.pdf» [14-05-2013].
Vásquez, Raquel Bello (2006). Mulheres do século XVIII. A Condessa de Vimeiro. Ed. Ela por ela. Lisboa.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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3 Comentários

  1. O contexto historico ficou faltando. A Condessa tentou via ficção justificar a legitimidade de uma mulher governar e, implicitamente, da Rainha de Portugal atuar como Chefe de Estado. Ou seja, há outros ‘interésses’ além do ‘machismo da sociedade patriarcal portuguesa’. Por esta época governava Dona Maria I, mãe de Dom João VI, a primeira rainha de Portugal. Primeira rainha da Inglaterra também era Mary I Tudor, a Bloody Mary. Algo como duzentos anos antes. Conclusão é que, como sempre, para os vermelhos o que não fecha com a ideologia fica de fora.

  2. Humm…Parece que há que se ter referencias. ‘A New History of Iberian Feminisms’. Silvia Bermúdez e mais alguém. Editora da Universidade de Toronto. ‘As mudanças introduzidas pela Condessa de Vimeiro para esta história são significantes’. Ou seja, não é bem ‘história’. Na lenda original Osmia é estuprada por um soldado romano durante a invasão da Peninsula Iberica (logo Portugal não existia). Espera a oportunidade, mata o estuprador, corta-lhe a cabeça e a leva para o marido. Suicida logo em seguida (colocar o ‘se’ é pleonasmo?) para mostrar que foi forçada a cometer adulterio mas não queria continuar vivendo sem honra. Lembra a Revolta de Boudica no Reino Unido.

  3. Espera-se que os leitores não sejam completamente ignorantes, logo bastava mencionar que o texto está em galego, não precisa explicar. Nos antigamente bastava um ‘sic’.

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