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Por quem Bolsonaro chorou? Pelos 690 mil mortos da Covid é que não foi – por Carlos Wagner

“Lágrimas derramadas na solenidade no Club Naval têm um propósito. Qual?”

Tragédia de Manaus, a capital do Amazonas, no início da pandemia da covid-19, nunca vai ser esquecida (Foto Reprodução)

Não tem como deixar passar batida a notícia sobre o choro do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Seja qual tenha sido o motivo das lágrimas, posso citar uma longa fila de acontecimentos que não fizeram Bolsonaro chorar. É sobre isso que vamos conversar.

Mas antes vou seguir um conselho de uma editora que tive nos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações. Vamos contextualizar a história do choro para não cometer o erro de acreditar que todos sabem do que estamos falando.

Aconteceu na segunda-feira (05/12), quando Bolsonaro, acompanhado pela primeira-dama Michelle, estava no Club Naval de Brasília (DF), em uma cerimônia cumprimentando os novos oficiais generais recém-promovidos e suas esposas. Vi várias vezes o vídeo do choro em busca de algum detalhe que tivesse passado despercebido.

Chamou a minha atenção a indiferença da plateia com o choro presidencial. O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, comentou no Twitter: “Durante 4 anos tentaram desumanizar o presidente Bolsonaro. Tentaram retirar o que mais tem: sensibilidade, simplicidade, humildade. Conteve as emoções dentro de si. Livre agora, Bolsonaro pode ser como ele é.”

Nogueira deu a versão oficial do choro do presidente. Só um esclarecimento sobre um ponto da fala do ministro: “livre agora”. Ele se refere ao fato de que no início do próximo ano Bolsonaro será substituído pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Voltemos a nossa conversa. Como falei, vou citar alguns dos fatos que não levaram Bolsonaro às lágrimas. Comecemos pelo que considero o mais grave. O comportamento dele durante a pandemia da Covid-19. Para ganhar as manchetes dos jornais nacionais e internacionais, o presidente desafiou o poder de contágio do vírus e a sua letalidade, tornando-se um negacionista e, com isso, arrastando os brasileiros para um período sombrio da história recente do país.

Tudo está detalhado no relatório de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19 (CPI da Covid). Esse relatório coloca as digitais do governo nessas mortes. Pelos menos 50% das mortes poderia ter sido evitada se Bolsonaro tivesse feito a coisa certa, como ter seguido os conselhos da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Eu assisti ao sofrimento de irmãos, pais, filhos e amigos de pelo menos oito vítimas. Também escrevi sobre a falta de oxigênio hospitalar em Manaus (AM), que causou a morte por asfixia de pacientes. Na ocasião, o presidente não derramou uma lágrima por tudo isso e sequer visitou um hospital. Portanto, não teria motivos para chorar pelos mortos da Covid na solenidade no Club Naval de Brasília.

Outra tragédia que não motivou as lágrimas do presidente foi o desmonte dos órgãos que fiscalizam o meio ambiente, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA). Graças ao desmonte, reservas indígenas foram invadidas por garimpeiros, o que resultou na morte de muitos índios. E na proliferação de madeireiros clandestinos, que derrubaram enorme parte da Floresta Amazônica.

Toda essa situação é sintetizada pelo assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, em junho, quando se dirigiam de barco para a cidade de Atalaia do Norte, no oeste do estado do Amazonas – há farto material publicado nos jornais. Os matadores foram presos. Mas quem abriu caminho para ação deles, destruindo a estrutura de fiscalização ambiental, foi o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que não só está solto como se elegeu deputado federal pelo Partido Liberal (PL) de São Paulo.

Elegeu-se, mas tem uma espada pendurada sobre a sua cabeça. Um inquérito feito pelo delegado federal Franco Perazzoni liga o ex-ministro ao contrabando de madeiras da Amazônia. O real tamanho da devastação feita entre os índios e a floresta está sendo descoberto e documentado por uma equipe da Transição, técnicos e políticos que fazem um levantamento do governo Bolsonaro, que servirá para orientar as ações do novo governo.

Citei esses dois casos pelos quais o presidente do Brasil não derramou uma lágrima. Muito menos aquelas derramadas no Club Naval. Fato é o seguinte. Nós vamos escrever ainda por muito tempo sobre os acontecimentos do governo Bolsonaro. Porque muitos deles são inéditos e há muitos detalhes que não sabemos.

Tenho ouvido, lido e visto nos noticiários sobre o abatimento do presidente devido a sua derrota para Lula. Não tenho levado o assunto a sério porque não é do perfil de Bolsonaro “jogar a toalha”. Ele vai continuar insistindo na história de ter sido sacaneado nas eleições pelas urnas eletrônicas.

Até quando terá munição para manter os acampamentos ao redor dos quartéis vai depender de uma série de fatores. Sendo o principal deles a aposta que os bolsonaristas fizeram em continuar fustigando Lula até que ele perca a paciência e comece a responder as acusações. Tenho dúvidas sobre o sucesso dessa estratégia, porque o novo governo terá tantos problemas para resolver que não terá espaço para se preocupar com provocações.

Tenho escrito que Bolsonaro é um “cara esperto”. Conseguiu sobreviver três décadas como parlamentar e venceu uma eleição presidencial que até ele duvidava que venceria. Elegeu-se porque as oportunidades se apresentaram e ele soube aproveitá-las.

Portanto, as lágrimas derramadas na solenidade no Club Naval têm um propósito. Qual é? Logo vamos saber. A única certeza que temos é que não são pelos mortos da Covid-19 e muito menos pela devastação da Floresta Amazônica e as mortes de índios.

PARA LER NO ORIGINAL, CLIQUE AQUI.

(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.

SOBRE O AUTOR:  Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

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