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A agonia do Vacacaí – por Marta Tocchetto

“A secura, considerando a estiagem, foi além. É de cortar o coração!”

A secura esperada, considerando a grave estiagem que assola o Rio Grande do Sul, foi mais além. Foi o testemunho da agonia do rio. É de cortar o coração!

Sábado é dia de trilha em meio à natureza. Os percursos variam e são estabelecidos pelos mais experientes, trilheiros há mais tempo. Em geral, variam de 5 a 13 km – pouco mais, pouco menos. Cachoeiras, matos, morros, riachos, estradas, vilarejos históricos – caminhos com diversos graus de dificuldades e belezas. Verdadeiros santuários onde a natureza é a divindade a ser contemplada, admirada para revigorar, emocionar. Agradecer.

Dia 21 de janeiro não foi diferente. O caminho a trilhar foi o leito do rio Vacacaí, acessado pelo Balneário Passo do Verde. A secura esperada, considerando a grave estiagem que assola o Rio Grande do Sul, foi mais além. Foi o testemunho da agonia do rio. É de cortar o coração!

Quando eu era criança e lá se vão várias décadas, costumávamos passar o primeiro dia do ano no Verde. Íamos no caminhão que, semanalmente, viajava a Porto Alegre para buscar produtos para abastecer a Mercearia Bonifácio. Tradicional ponto comercial de Santa Maria que levava o nome do meu pai. Era o nosso único feriado do ano. Os demais dias, 364, eram de trabalho duro e contínuo. Não escapavam nem os domingos.

Às 6 horas da manhã começava o movimento e o carregamento – melancias, bebidas, carnes variadas, carvão, bolo, pão. Levávamos até batatas cozidas para preparar a tradicional salada maionese para acompanhar o churrasco. A variedade e a fartura de comida sempre fizeram parte da nossa família. Meu pai priorizou a educação e a mesa farta. Isso sim era essencial, dizia ele do alto da sua sabedoria espanhola. O resto podia ser adiado.

A lona encerado Locomotiva, caprichosamente ajeitada, protegia a comilança, cujo cheiro tomava conta do ambiente. Nós íamos junto, embaixo da lona. Recomendadíssimos para não nos levantarmos e cair, comprometendo o dia tão esperado. Meu pai ia na cabine com o motorista, pois ele não dirigia. Cedinho chegávamos à beira do rio para escolher uma bela sombra para montar nosso acampamento. As melancias eram mergulhadas nas águas do rio para se manterem frescas até a hora da sobremesa. As bebidas eram conservadas geladas alternadas com camadas de gelo em grandes caixas de isopor.

Não víamos a hora de arrumar tudo para podermos tomar banho de rio, brincar na areia fina e branca, pescar lambaris. Pescaria não podia faltar, mesmo que fosse com iscas de miolo de pão ao término das minhocas. Os peixes mantidos no baldes com água eram a janta para a volta. O dia era de aventuras e de brincadeiras. Rolar pelas dunas e cair dentro da água era um encantamento. Grandes boias de câmara de pneus completavam a diversão.

As risadas ainda soam nos meus ouvidos. A água refrescava a pele que ia ficando queimada e vermelha com o sol forte. Protetor solar e repelente para mosquitos eram produtos de um futuro distante. Ao fim do dia, o torraço era inevitável, sem falar nas picadas dos borrachudos. Nem as compressas de vinagre para aliviar a ardência das queimaduras de sol, tiravam a alegria daquele dia. Muito menos traziam arrependimento.

As águas límpidas do rio escondiam redemoinhos e muitas histórias trágicas que serviam não apenas para amedrontar, mas para alertar sobre os cuidados necessários – água não tem galhos, dizia minha mãe. O poço das mulheres era um lugar que assustava e aguçava a nossa imaginação. Um lugar quase assombrado, cujos redemoinhos surgiam repentina e misteriosamente, engolindo como por abdução, principalmente, vítimas femininas. O Verde e o Arenal foram por muito tempo, as praias dos santa-marienses que gostavam de acampar, navegar e pescar nos arredores da cidade.

Ao iniciar os 8 km de trilha, minhas lembranças se libertaram ao rever o rio como se estivessem aprisionadas ao longo tempo em que estivemos separados. Os lugares por onde eu passava, as paisagens para as quais eu olhava, em nada retratavam o Verde da minha infância, tampouco das minhas recordações.

O Verde é hoje, um trecho agonizante de um rio exaurido. As árvores parecem uma fotografia de cabeça para baixo. As raízes tomam o lugar das copas. São seres cambaleantes que se esforçam para se manter firmes e eretos. Em dado momento pela fragilidade da terra, esgotadas e exaustas, tombam e vão morrendo aos poucos. A grave erosão não oferece sustentação. O terreno frágil não oferece suporte para as raízes e as árvores vão caindo em efeito dominó – cai a primeira, cai a segunda, cai a terceira … cai, cai, caem várias.

O solo desnudo se torna cada vez mais árido e seco. As margens do rio estão nuas. Não há mata ciliar na maioria do percurso. O assoreamento é uma realidade que altera o fluxo das águas e a oxigenação. As águas turvas, quase paradas, fedem. A matéria orgânica se decompõe tornando o leito barrento e pegajoso. Os peixes e mariscos mortos testemunham e comprovam o comprometimento do rio. A areia branca e fininha deu lugar a um areão, quase um cascalho – rejeito da mineração praticada pelas areeiras.

A água a cada verão é mais escassa, fruto das constantes intervenções do homem, do agravamento das mudanças climáticas e da ausência de projetos para recuperação. Nem assim, as bombas deixam de puxar água para irrigar as lavouras próximas, esgotando a pouca quantidade que resta. Prática sem compaixão que acelera a morte do rio agravando, ainda mais a agonia do Vacacaí. O vigor do rio fede. O vigor do rio está estagnado. O vigor do rio é turvo. O vigor do rio está sem vida. O vigor do rio luta em meio ao lixo. O vigor do rio está morrendo ante ao descaso e à degradação.

A proteção e a recuperação dos mananciais são essenciais para manter as reservas hídricas para sustentar as diversas atividades humanas e os diferentes usos. Ações como decretação de situação de emergência, perfuração de poços, liberação da irrigação são medidas que amenizam as consequências da falta de água. Não resolvem o verdadeiro problema da escassez.

Atuar sobre as causas depende de medidas para reduzir os fatores que contribuem para as alterações climáticas que são cada vez mais graves, como, por exemplo, a substituição do atual modelo devastador do agronegócio que envenena, prioriza a monocultura, desmata e visa o lucro imediato.

A recuperação dos mananciais hídricos se dá e se dará por meio do fortalecimento dos Comitês de Bacias Hidrográficas e de políticas públicas voltadas à restauração das nascentes, dos banhados e das matas. Vida ao Vacacaí!

(*) Marta Tocchetto é Professora Titular aposentada do Departamento de Química da UFSM. É Doutora em Engenharia, na área de Ciência dos Materiais. Foi responsável pela implantação da Coleta Seletiva Solidária na UFSM e ganhadora do Prêmio Pioneiras da Ecologia 2017, concedido pela Assembleia Legislativa gaúcha. Marta Tocchetto, que também é palestrante em diversos eventos nacionais e internacionais, escreve neste espaço às terças-feiras.

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Um Comentário

  1. Duas observações. Rios estão baixos e ninguém inspeciona pontes ou aproveitar para meter uma retroescavadeira e que tais. Sim, porque sai mais barato que uma dragagem. Segunda é que existem ciclos. Um meandro de rio as vezes fica isolado por conta de uma mudança de curso. Vira um lago, depois um banhado e depois mato. Obvio que hoje em dia tem maior chance de virar lavoura de soja, mas ai é outra historia.

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