A escravidão atual na formação econômica e social brasileira – por Leonardo da Rocha Botega
“Como a História demonstra, a mentalidade escravocrata nunca despareceu”
Nas últimas semanas, tem repercutido fortemente a revelação do uso de trabalho análogo à escravidão por parte das Vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, na Serra Gaúcha. Ao todo foram resgatados 207 trabalhadores entre 18 e 57 anos, contratados a partir da empresa terceirizada Fênix, que realizavam principalmente o trabalho de cargas e descarga das uvas. A maior parte desses trabalhadores foi recrutada no Estado da Bahia e submetidos a sessões de violência que incluíam armas de choques, spray de pimenta e cassetetes, quando reagiam a situação em que estavam.
A maior parte das reações que se seguiram à Operação de desmonte do cativeiro em Bento Gonçalves, que contou com a participação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e das polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF), foi de revolta, incluindo um forte boicote por parte de consumidores e empresas dos produtos das vinícolas citadas.
Obviamente, num país que nos últimos anos normalizou os absurdos, houve reações que buscavam justificar o injustificável, como no caso do pronunciamento racista e xenofóbico do vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel. Porém, em um contexto geral, tais reações foram exceções. O que não é exceção é o caso em si!
Em um artigo publicado no último dia 2 de março na plataforma Repórter Brasil, o jornalista Leonardo Sakamoto chamou atenção para o fato de o trabalho escravo contemporâneo estar presente em diversas cadeias produtivas “muito mais do que as pessoas imaginam”.
Sakamoto destacou que somente nas últimas décadas diferentes empresas brasileiras, de diferentes ramos produtivos, tais como Zara, Animale, M.Officer, MRV, OAS, Odebrecht, Cutrale, Citrosuco, Cosan, Nespresso, Starbucks, JBS, Marfrig e Minerva, estiveram envolvidas direta ou indiretamente com trabalho escravo.
Desde 1995, quando foi criado pelo governo brasileiro o sistema de combate ao trabalho análogo à escravidão, em torno de 60 mil trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados. Em 2022, conforme o MTE, foram 2.575 trabalhadores em 462 operações, 31% a mais do que em 2021 e 127% a mais do que em 2019, último ano antes da Pandemia da Covid 19. Este é o maior número de resgates em um ano desde 2013.
Se ampliarmos o período de análise para além de 1995, inúmeros outros casos serão encontrados como o dos Barracões na extração do látex no Ciclo da Borracha na Primeira República ou o da “Fazenda Volkswagen” na Amazonia em 1973, durante (e com apoio) a Ditadura Civil-Militar. Tais exemplos somente demonstram que o uso da escravidão ou de trabalho análogo ao escravo sempre foi uma constante na formação econômica e social brasileira e continua sendo.
Continua sendo, pois a classe dominante brasileira nunca aceitou que os trabalhadores e as trabalhadoras tivessem uma cidadania plena. A abolição foi resultado de um movimento que combinou a luta dos abolicionistas, a resistência dos escravizados e a pressão externa. A elite escravocrata, quando viu que a abolição era questão de tempo, prolongou o quanto conseguiu a escravidão, até negociar o pagamento de uma indenização por parte do Estado brasileiro. Aos libertos nenhuma reparação, nenhum direito social, apenas uma cidadania abstrata e capenga.
A classe dominante brasileira nunca aceitou que os trabalhadores e as trabalhadoras tenham direitos trabalhistas. A redução da jornada de trabalho, o direito às férias remuneradas, a Consolidação das Leis Trabalhistas e a Decretação do 13º salário, foram chamados, assim como as atuais políticas de garantia dos mínimos sociais, de “ameaças aos investimentos” e medidas de reprodução da “vagabundagem”.
Um dos principais intelectuais do conservadorismo brasileiro, Miguel Reale (o pai), chegou inclusive a dizer que uma vez implementada a Constituição de 1988, que previa a formação de um Estado de Bem-Estar Social tardio, estaríamos implantando o “Totalitarismo Social” no país.
Foi essa mesma classe dominante que impôs uma Reforma Trabalhista que desestruturou ainda mais o já precarizado mercado de trabalho brasileiro e jogou os trabalhadores e as trabalhadoras no submundo do trabalho intermitente e dos nefastos “contratos” das empresas terceirizadas. Muitas dessas, como no caso da “prestadora de serviços” para as vinícolas da Serra Gaúcha, assumindo a função de gerentes da escravidão dos empreendimentos que são modelos de gestão e sucesso, segundo a nossa própria classe dominante.
Como a História tem nos demonstrado, na classe dominante de um dos últimos países que aboliu formalmente a escravidão, a mentalidade escravocrata nunca despareceu. Ela está ali! Pronta para chamar quem resiste a ela de “vagabundo” e as parcas políticas do Estado de garantia de mínimos sociais de “assistencialismo”.
A escravidão se encaixa muito bem em nossa excludente formação econômica e social atual, como se encaixou muito bem na excludente formação econômica e social da Colônia e do Império. Nas Senzalas de hoje tem muito das senzalas de ontem! Nos modernos empreendedores de hoje tem muito do senhor de engenho de ontem!
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
Kuakuakuakua! Ou seja ‘no capitalismo, sem a regulação firme do Estado (ou seja, regulação dos vermelhos), qualquer trabalho é analogo a escravidão’. ‘Vagabundagem’ mesmo, para valer, é só no serviço publico. Sim, porque na iniciativa privada a porta da rua é serventia da casa. Depois do Brasil uma penca de paises aboliu a escravidão. Basta perguntar para alguém que entenda de história. Ato da Conferencia de Bruxelas de 1890, por exemplo. Outros? Corea, Islandia, Taiwan, Egito, Madagascar, Camarões, Dentre outros ainda por cima. 1904, Tratato de Paris para abolição do trafico de pessoas brancas. Servidão abolida na Revolução Russa de 1917. Marrocos 1922. Afeganistão. Turquia. Nepal. Serra Leoa. Irã, Etiopia. Bahrain. Kuwait. Qatar. Butão. Nigéria. Mali. Arabia Saudita. Yemen do Norte. Yemen do Sul. Oman. Mauritania (este teria sido o ultimo). Detalhe importante, entre abolir e criminalizar muitas vezes existe um intervalo de tempo. Resumo da opera: Brasil não foi um dos ultimos.