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O racismo como estrutura constituinte da sociedade espanhola – por Leonardo da Rocha Botega

Postura racista foi “política de Estado na maior parte da História da Espanha”

No último dia 21 de maio, uma das cenas mais comentadas no mundo (esportivo e não esportivo) foi a da multidão no Estádio Mestalla proferindo ofensas racistas ao jogador de futebol Vinicius Júnior. Os gritos de “mono”, macaco em espanhol, desestabilizaram o craque do Real Madrid e da Seleção Brasileira, levando-o a revidar uma agressão proferida por um adversário, o que resultou em sua expulsão. O adversário, por sua vez, sequer foi advertido.

Momentos depois, enquanto Vinicius Junior distribuía autógrafos para crianças, um jornalista do períódico esportivo de Valência, Super Deporte, chegou ao cúmulo de perguntar ao brasileiro se ele não iria “pedir perdão” pelas suas atitudes dentro de campo. No dia seguinte, o mesmo jornal publicaria uma das capas mais infames da História da Imprensa Esportiva, chamando o técnico do Real Madrid de “mentiroso”, dizendo para Vinicius “não provocar”.

Se não bastasse tais absurdos, a revolta contra as atitudes dos torcedores do Valência foi classificada como um “show montado por conta de um incidente racista condenável, porém totalmente isolado”. Reação semelhante também foi vista por parte do presidente da La Liga, entidade organizadora do Campeonato Espanhol, Javier Tebas, que nas últimas eleições espanholas declarou voto no partido neofascista Vox.

Não foi a primeira vez que Vini Jr foi vítima de racismo na Espanha, a cena tem se repetido constantemente em diferentes estádios do país. Vini Jr também não tem sido a única vítima, tampouco o futebol tem sido o único esporte onde o racismo espanhol tem se manifestado. No basquete, o brasileiro Yago Mateus têm sido vítimas das mesmas atitudes por parte de torcedores em diferentes cidades. Saindo da esfera esportiva, em 2019, circulou o mundo uma cena de crianças brancas praticando racismo contra um menino negro em um parquinho, sob os olhares, nem um pouco desconfortáveis, de suas mães.

Como bem lembrou o presidente do Conselho Espanhol para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre), o historiador Antumi Toasijé, “o racismo tem uma longa tradição na Espanha”. Portanto, as manifestações racistas dos torcedores contra Vini Jr e Yago Mateus, bem como as manifestações das crianças brancas contra o menino negro no parquinho, podem ser consideradas parte de uma das estruturas constituintes da sociedade espanhola.

O Estado Espanhol foi inventado no Século XV a partir do casamento dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, um ato diplomático que unificou os maiores reinos católicos da Península Ibérica no contexto da Guerra de Reconquista que visava expulsar os mouros (mulçumanos advindos do norte da África que ocupavam a região desde o século VIII). Um dos primeiros atos do “novo” Estado foi definir que todo espanhol deveria ser cristão, cabendo aos judeus ou mulçumanos duas opções, a conversão ou a expulsão.

Naquele momento criou-se uma marca fundante da sociedade espanhola: o Ser Espanhol Branco Cristão. Uma marca que não esteve presente apenas no território espanhol da Península Ibérica, mas também em todos os territórios coloniais espanhóis. A autodefinição do espanhol cristão como único ser passível de dignidade e reconhecimento esteve presente na conquista dos povos originários na América.

Nos debates travados na Controvérsia de Valladolid (1550-1551), onde os religiosos Bartolomé de las Casas e Juan Gines Sepulveda discutiam sobre os ameríndios terem alma ou não, o ponto de partida foi a perspectiva do Ser Espanhol Branco Cristão. Enquanto Sepulveda defendia que os ameríndios não possuíam alma e, portanto, poderiam ser escravizados, Las Casas defendia que eles possuíam alma, por isso, deveriam ser cristianizados. A rica cultura originária, cuja tecnologia surpreendeu inúmeros nobres espanhóis, em nenhum momento era vista como válida, afinal, era cultura de gentil, ou seja, de não-cristãos.

As estruturas políticas e socioeconômicas da colonização espanhola também refletiam o ponto de vista da superioridade racial. Os altos cargos da estrutura política colonial poderiam ser ocupados somente por “espanhóis legítimos”, ou seja, aqueles nascidos na Espanha, os chapetones. Aos “criollos”, a elite colonial formada pelos descendentes de espanhóis ibéricos, cabia apenas os cargos mais baixos da administração da colônia. Tal realidade se manteve até as independências, no início do Século XIX.

As independências abriram as portas do controle político, econômico e social dos novos Estados para os “criollos”, porém, não produziram mudanças significativas em inúmeras estruturas herdadas da colonização. O racismo se manteve fortemente, tendo agora como principais alvos os mestiços, os indígenas e os negros. Por sua vez, do outro lado do Atlântico, a perda das colônias americanas não representou o abandono do Ser Espanhol Branco Cristão.

No Século XX, a imagem do Ser Espanhol Branco Cristão foi utilizada na luta das falanges do franquismo (o “fascismo espanhol”) contra os Republicanos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O “vitorioso” Regime Franquista utilizou frequentemente tal imagem ao longo das quase quatro décadas de governo ditatorial. Nem mesmo o fim da Ditadura e a mobilização cívica que se seguiu na construção da democracia foi capaz de abalar o racismo espanhol, tanto contra os latino-americanos e africanos, quanto contra as nacionalidades divergentes do Estado Unitário.

Entre 2013 e 2021, segundo a Federação SOS Racismo, constituída por organizações da luta antirracistas na Espanha, houve um crescimento de 30% nas denúncias dos casos de racismo no país. Porém, segundo o Cedre, 81,8% das vítimas de racismo não prestam queixas às autoridades espanholas. A impunidade, tal qual temos visto nas manifestações contra o Vinicius Júnior, ainda é a principal regra.

É a principal regra, uma vez que o racismo é estrutura constituinte da sociedade espanhola. Foi política de Estado na maior parte da História da Espanha. É parte essencial da “máquina de fazer espanhol”, narrada brilhantemente por um dos personagens do livro de Vitor Hugo Mãe que leva esse mesmo título. Uma máquina que é reavivada politicamente pelos novos e pelos velhos fascismos espanhóis e suas formas ressentidas de reativação do Ser Espanhol Branco Cristão, diante de um país em permanente crise desde a sua transformação em periferia europeia.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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8 Comentários

  1. Nada do que Vini Jr tenha feito em campo justifica o que fizeram com ele. Basico. É um piá ainda por cima. Há que se ter cuidado hoje em dia, para tudo que se fala parece que não pode faltar uma nota de rodapé. Analfabetos funcionais não faltam. Alas, é bom alegrar os olhos para alegrar o dia. https://www.youtube.com/watch?v=XfVc2iqkvzM

  2. Noção de que ‘meu pais é melhor do que os outros’ e ‘nosso povo é superior’ é muito mais disseminado do que parece e é muito mais ancestral. China se considera o ‘Império do Meio’, ou seja, o resto do planeta é uma ponchada de terra ao redor dos chineses. Artigo pressupõe que os fatos historicos se sucedem e contem uma cadeia de causa e efeito. População espanhola, grande maioria, não lembra de grande parte da historia citada. Primeiro por desinteresse, não são muito diferentes daqui neste aspecto. Segundo porque tem muito mais historia para estudar, começa antes do Império Romano.

  3. Vitor Hugo Mãe é escritor angolano. Ficção aceita tudo. ‘[…] 81,8% das vítimas de racismo não prestam queixas às autoridades espanholas’. O numero saiu de onde? ‘Estimativas’? Ou é o velho truque de chutar um numero para fazer parecer que o problema é maior do que parece?

  4. Contra os ‘Republicanos’ na Guerra Civil Espanhola (na verdade comunistas, liberais “isentões”, socialistas e anarquistas) estavam ‘não só os fascistas’ e sim os conservadores catolicos, os monarquistas Bourbon, os monarquistas Carlistas e os falangistas. Franco (que era o ‘plano B’) era conservador católico. Quando o lider das falanges foi assassinado ele assumiu a liderança. Alas, os comunistas passaram o rodo nos anarquistas em Barcelona. Não era ‘a luta do bem contra o mal’ e nem ‘polarização’. Muito mais complexo.

  5. ‘[…]no contexto da Guerra de Reconquista que visava expulsar os mouros […]’. Na verdade só sobrava o Emirado de Granada. O interessante é que os muçulmanos (eram sofisticados) deixaram muitas coisas que hoje são atração turistica e rende divisas para o pais. Expulsos só os judeus (Israel não surgiu só do Holocausto), muçulmanos poderiam ficar, mas tinham que pagar os tubos em tributos.

  6. Vox se define como anti-fascista, anti-nazista e anti-comunista. Há nacionalismo, tradicionalismo e um certo autoritarismo no discurso. São liberais na economia (neoliberais segundo os vermelhos), são contra a Maria da Penha de lá (querem estender a todos que sofrem abuso, inclusive velhos e crianças), são contra o aborto, defendem prisão perpetua para crimes sexuais, são contra a ‘ideologia de genero’, são contra o casamento entre pessoas de mesmo sexo (defendem a união civil no entanto), defendem o direito de posse de armas pelos cidadãos, querem restringir as imigrações ilegais (25% dos condenados por crimes na Espanha são estrangeiros, 16% não são europeus). Há quem diga que não tem muita ideologia, é um populismo de direita.

  7. Ao inves de aceitar a informação que é ‘oferecida de graça’ hoje é possivel ir direto as fontes. Coisas que alguns não assimilaram. Verificar o que os analistas politicos espanhois dizem sobre o Vox, ler o estatuto do partido, etc. O partido se identifica como sendo de direita. Academia e jornalistas classificam como ‘extrema-direita’ (qualquer semelhança não é mera coincidencia). É uma dissidencia do Partido Popular. Na fundação do partido recebeu quase um milhão de euros do Povo Mujahedin do Iran e do Conselho Nacional de Resistencia do Iran. Gente que se opõe ao regime dos Aiatolás. É um partido centralizador, se opos a tentativa de independencia da Catalunha. Na pandemia foi dos primeiros a pedir restrições de voos oriundos da China e da Italia (foram classificados de xenofobos). Foram contra a passeata do dia internacional das mulheres por conta da aglomeração (foram chamados de misoginos).

  8. Vox, para começo de conversa, não é um partido ‘neofascista’. O que acontece no Brasil é um movimento dos vermelhos (e da midia ‘cumpanhera’) de ressignificar a palavra ‘fascismo’ para englobar a totalidade dos adversários politicos. Não que os fascistas não existam, mas obviamente estão longe de ser a totalidade dos que se opõe aos vermelhos. Alas, ultimas eleições sinalizaram um crescimento da direita/centro direita por lá. Inclusive em Sevilha, um tradicional reduto de esquerda. Nada fora do script, foi comentado no sitio que a Europa estava abraçando a guerra da Ucrania e haveria consequencias economicas e com isto repercussões politicas. Trabalhistas andaram ressuscitando no UK. Padrão, situação está ruim? Troca-se o governo pelos adversarios. Simples assim.

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