Sangue de chocolate – por Bianca Zasso
Não existe esporte mais cinematográfico que o boxe. Socos certeiros, supercílios cortados e os bastidores cheios de dinheiro e confusão rendem roteiros incríveis. Isso porque bater no inimigo é uma forma de exorcizar fantasmas e aliviar um pouco o peso da vida que insiste em pesar nos nossos ombros. Assim como acontece dentro do ringue, a vitória não é garantida. Perder para a vida é a mais difícil das lutas. Jake La Motta que o diga. O boxeador teve sua vida contada nas telas pelas mãos de um dos diretores mais talentosos e dedicados de Hollywood, o ítalo-americano Martin Scorsese. Mas isso não garantiu um nocaute logo no primeiro round.
Touro indomável tinha tudo para dar errado. Lançado em 1980, década que ficaria marcada como uma das mais coloridas e despretensiosas do cinema, a produção possui uma requintada fotografia em preto e branco assinada por Michael Chapman que faz mais do que contrastar com os tons fortes da época. A escala de tons de cinza usados traz mais intensidade às cenas, em especial as ambientadas nos ringues. O sangue grosso que escorre pelo rosto de La Motta, interpretado com perfeição por Robert De Niro, era feito de chocolate. Um truque para dar ainda mais realismo às cenas, onde uma simples gota de suor tem o seu significado amplificado. Há mais do que calor, há medo, raiva e desejo ali.
O gosto de épico é ainda mais forte quando entra em cena a trilha sonora, composta trechos da ópera Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, que batem de frente com a violência entre os lutadores. Cada saco parece mais dolorido quando se tem violinos ao fundo. A receita preto e branco + trama fora dos padrões + trilha de ópera parecia datada ao fracasso. Porém, como em todo combate inesquecível, o melhor ainda estava por vir.
Scorsese vinha de uma fase difícil, com alguns fracassos de bilheteria, como New York, New York, e uma temporada afundado no vício em heroína. Touro Indomável parecia ser mais um passo do diretor rumo ao fundo do poço. Mas um cruzado de direita apareceu. Depois de chocar o mundo com sua visão pessimista sobre os soldados que passaram pela Guerra do Vietnã mostrado em Taxi Driver, filme de 1976, Scorsese demostra um olhar mais carinhoso em Touro Indomável, colocando sobre o protagonista uma câmera que parece sofrer junto, acompanhando cada rasteira que a vida lhe dá. E o público aplaudiu esse carinho e se emocionou.
A Academia, que sempre teve restrições com os trabalhos de Scorsese, continuou sua cisma e premiou apenas Robert De Niro como Melhor Ator e Thelma Shoonmaker, pela edição primorosa do filme na cerimônia do Oscar de 1981. O troféu de melhor filme e diretor não veio, mas o sucesso deu às caras. Scorsese entrou num ritmo de produção que continua até hoje, sempre inovando e experimentando os mais diversos gêneros, sem nunca perder sua assinatura. Característica comum a quase todos os seus companheiros do movimento New Hollywood, que revolucionou a indústria americana a partir dos anos 70.
Cinebiografias existem aos montes. O público adora saber da vida alheia. Mas Touro Indomável faz muito mais do que contar a trajetória de um esportista. A vida de Jake La Motta foi como a de muitos astros do boxe, cheia de altos e baixos e a redenção não veio de maneira fácil e passou longe do final feliz. Na mão de qualquer outro diretor, Touro indomável seria mais um filme sobre a decadência de um homem. Sob o domínio de Scorsese, torna-se uma obra cheia de camadas, onde as imagens ajudam a nos mostras quem foi, afinal, esse pugilista que saiu do bairro do Bronx para conhecer a fama em toda a América.
É mais do que um fato depois do outro. São cenas inesquecíveis, densas, de alguém que tem tantos defeitos quanto qualquer um de nós. Uma das mágicas do cinema é conseguir transformar a dor alheia em obra de arte. Touro Indomável é um belo exemplo disso. Tente domar a emoção diante do filme. Se conseguir, sinto informar, caro leitor, mas não corre sangue em suas veias. Nem o de chocolate.
Touro Indomável (Raging Bull)
Ano: 1980
Direção: Martin Scorsese
Disponível em DVD e Blu-Ray
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