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Teto de gastos e reforma tributária – por José Maria Pereira

O limite de um e a necessidade da outro, o articulista explica com didatismo

Antes mesmo da posse de Lula, já começaram os boatos de que o novo governo iria tentar acabar com o “teto de gastos” – regra constitucional que determina que os gastos primários do governo não podem crescer mais do que a inflação.  Ora, esse limite já foi ultrapassado várias vezes, em especial no período da pandemia, com a aprovação do “orçamento de guerra”, manobra parlamentar para burlar o teto de gastos.

Para não ferir a regra constitucional novamente em 2023, o Congresso aprovou, em dezembro do ano passado, a chamada “Emenda de Transição”, que excluiu R$ 168 bilhões do teto de gastos para o governo poder cumprir com suas obrigações. Mesmo assim, no final de julho de 2023, o novo governo anunciou o contingenciamento (retenção de recursos) dos ministérios da Saúde e Educação para não “estourar” o teto de gastos até que a reforma tributária seja aprovada no Senado.

Paralelamente, também se encontra no Legislativo um projeto de lei complementar em substituição ao teto de gastos. Combina regras para o resultado primário do governo (diferença entre receita e despesa, descontados os juros da dívida pública interna) e de controle dos gastos públicos. As despesas do governo poderão crescer entre 0,6% e 2,5% acima da receita do ano anterior em valores reais. Nesse intervalo, os gastos poderão crescer até 70% da variação da receita do ano anterior.

Essa é a parte principal da proposta que vem sendo divulgada pela imprensa. Muita coisa pode mudar ainda, pois o governo não tem votos suficientes para aprovar esses projetos. E, nesse sentido, a fama de Lula de grande negociador político vem sendo testada todo dia: “vai um ministério para lá, vêm alguns votos para cá”!

Há décadas, mais precisamente, desde antes da Constituição de 1988, que se fala da necessidade urgente de fazer uma “reforma tributária”. Quanto mais não seja, pelo descalabro burocrático – que faz da legislação tributária brasileira uma das mais extensas e confusas do mundo (e injusta, diga-se de passagem). Porém, entra governo sai governo, e o projeto não anda. Desta vez, ainda que seja “vencida pelo cansaço”, a reforma se tornou pauta prioritária de votação no Congresso antes do recesso parlamentar.

O âmago da reforma tributária está na mudança da forma de cobrança dos impostos: ao invés da “origem”, os impostos passarão a ser cobrados seguindo o princípio do “destino”. Assim, os tributos serão calculados tendo por base a região em que se encontra o consumidor do bem ou serviço e não mais pelo local em que o produto ou serviço é produzido.

Em resumo, ao invés de tributar a “oferta”, como é atualmente, o governo passa a cobrar os impostos sobre o “consumo”. Obviamente, estados grandes produtores, como São Paulo, poderão ter grande perda de arrecadação e deverão ter um mecanismo de compensação.  De todo modo, a reforma terá o mérito de estimular a descentralização industrial.

Outro objetivo da reforma tributária é a simplificação da arrecadação e a modernização do Fisco. Nesse sentido, haverá uma unificação dos impostos nos três níveis de governo. No caso federal, a legislação do PIS/Cofins tem mais de 2 mil páginas de regras e regimes especiais (só o índice tem 60 páginas!) que mostram que o atual regime fiscal está à beira do colapso.

Pela proposta, esses dois impostos, e mais o IPI, seriam substituídos pelo Imposto do Valor Agregado (IVA) de tributação do consumo – regime já adotado, com êxito, por 174 países. A intenção é reduzir a burocracia para as empresas e facilitar o ingresso de investimentos estrangeiros. 

O ICMS estadual e o ISS municipal serão extintos e substituídos por um único imposto sobre bens e serviços – o IBS. A dúvida é sobre como será recolhido esse imposto e como se dará a transferência para estados e municípios? Isso seria feito pelo Conselho Federativo do IBS. Esse Conselho tem gerado muita discussão por prefeitos e governadores porque, na proposta do relator, ele teria muito poder.

Além de arrecadar o novo imposto, efetuar compensações e distribuir os resultados aos estados e municípios, teria poderes para legislar normas e resolver conflitos entre os membros. A própria formação do Conselho não é consenso. São Paulo, o estado mais atingido pela mudança da cobrança da “origem” pelo “destino”, propõe que seja levado em conta o tamanho da população, fator que o beneficiaria.

Outro ponto de avanço na reforma tributária é o fim da cumulatividade dos impostos, o chamado “imposto em cascata”, o que fará com que a tributação seja a mesma, independentemente do tamanho da cadeia produtiva. Segundo o governo, a reforma prevê a criação de uma alíquota única, sem aumento da carga tributária atual, sobre o consumo (hoje fica próxima a 25%).

Uma outra alíquota, 60% menor, que incidirá sobre alguns bens e serviços especiais (remédios e transporte público, por exemplo) é outra novidade. Por último, será criada uma alíquota zero para uma lista de produtos da cesta básica. Os produtos que ficarem de fora dessa lista terão alíquota reduzida em 60%, caso o projeto, aprovado em dois turnos na Câmara, não sofra alterações no Senado.

O Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea), órgão ligado ao governo, prevê que uma alíquota única já reduz a carga tributária dos mais pobres. Com o sistema de cashback (devolução do imposto) é possível reduzir o peso dos impostos em 50% para os mais pobres. Ainda segundo o Ipea, apenas os 10% mais ricos vão pagar mais impostos; os outros 90% da população terão uma carga tributária menor.

Parece mágica, não é mesmo? E o que mais surpreende é porque uma proposta quase consensual levou tanto tempo para ser votada pelo Congresso? Na realidade, a reforma tributária ainda levará mais uma década para ser totalmente implementada e deve sofrer vários ajustes, até porque é preciso conciliar situações diferenciadas em cada estado da federação.  Mas um otimista diria que “antes tarde do que nunca”!

(*) José Maria Pereira é Doutor em Economia, professor aposentado do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM. O artigo acima foi publicado originalmente no site da Seção Sindical dos Docentes da UFSM (AQUI) e reproduzido com a autorização dele.

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9 Comentários

  1. O obvio ululante, a Reforma Administrativa não saiu. O lado do gasto não foi alterado. A politica é gastar como se não houvesse amanha. Basta chamar de ‘investimento’ para ficar bonito e depois a gente vê.

  2. ‘[…] uma proposta quase consensual […]’. Quem disse que ela é consensual? Grande parte da população não esta prestando atenção ou não esta entendendo. As brigas virão depois. Mais uma medida de cima para baixo, votada na base das emendas e ministerios (o deles está salvo, não serão atingidos). Até prova em contrário Bernard Appy, não importa o que digam os corporativistas, é uma zebra, aperta interruptores e botões no ar condicionado sem saber bem os efeitos do que produz.

  3. Estudos da PUCRS, IBGE, etc. Os 10% ‘mais ricos’ na media ganham 8 mil reais por mes. Irão pagar mais imposto? Sim, a menos que sejam pejotinhas. Simples permanece inalterado (dentre outros mecanismos). ‘[…] o sistema de cashback […] é possível reduzir o peso dos impostos em 50% para os mais pobres’. A ver, porque quem pode transferir imposto o faz. Resumo é ‘a classe média assalariada que se f.’. Vamos ver o que aparece na segunda parte da reforma, a que trata de patrimonio e renda.

  4. ‘[…] Imposto do Valor Agregado (IVA) de tributação do consumo – regime já adotado, com êxito, por 174 países.’ O que é uma cascata, só porque tem o mesmo nome não significa que seja a mesma coisa. No Brasil o municipio é ente da federação, uma mosca branca, para inicio de conversa.

  5. Molusco com L., abstemio, honesto e famigerado dirigente petista. ‘Grande negociador político’? Se não pingar no Congresso o que desejam nada é votado (e o que é votado ainda não é tudo o que o Rato Rouco deseja). Bota ‘negociação’ nisto. Alas, já falam em aumentar o numero de ministerios. Alas, já falam em aumentar o Fundo Eleitoral.

  6. Generalizações são sempre complicadas. Mas com o tempo SP deve concentrar produção. Motivo simples, a Guerra Fiscal causou distorções. Quando alguém vai produzir algo é economicamente aconselhável que monte a planta fabril perto dos insumos/materia prima ou perto do mercado consumidor. Com aliquotas menores muitas empresas foram atraidas para longe dos dois. SP (região Sudeste, Minas e RJ são os mais populosos logo em seguida) ainda é o maior mercado consumidor do pais. Dependendo do setor fabricas irão fechar e ser transferidas. NE inteiro tem população pouco maior que o estado de SP.

  7. Substituição do teto de gastos é uma incognita. O que acontecerá se acontecer recessão e a arrecadação cair? O gasto sobe mesmo assim? Keynes estropiado, o gasto sempre cresce não importa o que aconteça? Tem tudo para dar certo.

  8. Emenda da Transição foi um absurdo. Utilizando os programas sociais que custariam algo entre 60 e 80 bilhões aprovaram um trem da alegria com valor entre 145 e 200 bilhões. Se tem algo que o pessoal de BSB gosta é gastar dinheiro. Resolver problema é coisa da Globo.

  9. ‘[…] esse limite já foi ultrapassado várias vezes, em especial no período da pandemia,’ Então o teto de gastos deveria ser mantido durante a pandemia na base do ‘duela a quem duela’?

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