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Saramago, a Palestina e os hipócritas – por Leonardo da Rocha Botega

‘Crimes sofridos no passado não são salvo-conduto para cometer crimes agora’

Em março de 2002, uma delegação do Parlamento Internacional de Escritores visitou a Palestina, a convite do poeta Mahmoud Darwish. Entre os intelectuais que estiveram presentes estava o português, prêmio Nobel da Literatura, José Saramago.  Compuseram também a delegação os escritores Russel Banks, estadunidense, Vicenzo Consolo, italiano, Bei Dao, chinês, Juan Goytisolo, espanhol, Cristian Salmon, francês, e Wole Soyinka, dissidente nigeriano, que assim como Saramago, também foi laureado com o prêmio Nobel de Literatura. Além dos escritores, também se fez presente o cineasta estadunidense Oliver Stone.

A visita provocou um forte sentimento de indignação em Saramago. Ao fazer um chamado de que era preciso “dar um alarme em todo o mundo para dizer que o que acontece na Palestina é um crime que podemos deter”, o autor de “Ensaio sobre a cegueira” comparou o que acontecia na Cisjordânia e na Faixa de Gaza com Auschwitz. “É a mesma coisa, embora mantenhamos na mente as diferenças de tempo e de lugar”. Tal declaração gerou um grande desconforto no meio intelectual ocidental e Saramago passou a receber inúmeras acusações. A principal delas foi de antissemitismo.

Dias depois, em entrevista ao colaborador da rede britânica BBC em Ramala, José Vericat, Saramago foi questionando sobre a pertinência de tal analogia, uma vez que o sofrimento dos judeus teve lugar durante o regime nazista e em particular nos campos de concentração. Em sua resposta, o escritor português afirmou que era evidente que não havia câmara de gás para exterminar os palestinos, “mas a situação na qual se encontra o povo palestino é uma situação concentracionária: ninguém pode sair de seus povoados”.

Nesta mesma entrevista, Saramago definiu que o que se estava vivendo na região não era um conflito. Um conflito ocorre quando se tem dois países, com uma fronteira e dois estados definidos, cada qual com seu exército. O que se vivenciava não era isso, mas sim um Apartheid, a ruptura completa da estrutura social palestina pela impossibilidade de comunicação. Por fim, afirmou que se o uso da palavra Auschwitz incomodava muito, em lugar dela se poderia dizer “crimes contra a humanidade”.

A mesma acusação de antissemitismo sofrida por Saramago, vinte e um anos depois é direcionada contra inúmeros intelectuais e ativistas que hoje denunciam o massacre que o governo de Israel vem realizando contra o povo palestino sob a justificativa de luta contra o Hamas. Uma acusação que não encontra amparo real diante da diversidade de locais e lugares de fala de onde partem as críticas ao governo de Israel.

Seriam antissemitas Ralph Schoenman, Avi Shlaim, Noam Chomsky, Shlomo Sand, Norman G. Finkelstein, Uri Avnery, Llan Pappé, Judith Butler e Amós Oz? Todos judeus críticos da política de Israel em relação ao povo palestino. Seriam antissemitas os mais de trezentos judeus presos pelo governo estadunidense por estarem protestando pela paz em Gaza na Estação Grand Terminal em Nova York? Seriam antissemitas os representantes dos 120 países que votaram na ONU exigindo um cessar fogo?

Por fim, seriam antissemitas os milhares de manifestantes que no mundo todo tem protestado contra o massacre que vem realizando o governo Netanyahu? Um massacre que nada mais é do que a sequência intensificada do que vem ocorrendo nas últimas cinco décadas. Antes do fatídico sete de outubro, o Estado de Israel, em apenas um semestre, havia batido o “recorde” de assassinato de crianças palestinas em dezesseis anos. O “recorde” anterior fora “batido” justamente em 2022.

Acusar de antissemita aqueles que protestam contra essa realidade nada mais é do uma operação discursiva hipócrita de quem silencia diante do genocídio do povo palestino. Para além dessa acusação, existe a afirmação de que algumas vidas valem mais do que as outras. A defesa da luta do povo palestino é a defesa de que todas as vidas têm valor. É a defesa que de os crimes sofridos por um povo no passado não dão salvo conduto para que um Estado realize crimes no presente.   

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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11 Comentários

  1. O projeto de Apartheid israelense foi elaborado e está em curso tem mais de setenta anos. Todos, realmente todos os sucessivos governos israelense deram prosseguimento e intensificaram as práticas de expulsar, através da violência, tanto do Estado (com o Exercíto) como com os colonos (grupos sionistas alegando cumprir ordens divinas) aldeias e vilarejos palestinos. Como disse Saramago, como é possível um povo ter sofrido um massacre por parte dos nazista na decáda de 1930-1945 aplicar uma violência extrema e uma política de assasinatos contra um outro povo (os palestinos)?

  2. Lucida matéria! Foge do convencional que é profundamente parcial. Massacre não pode ser editado, é real. A narrativa é que pode ser criada, inventada. Que o mundo se dê conta da triste e repulsiva indiferença. Na verdade, o mundo não, mas os que o governam!

  3. Resumo da opera: podem falar o que quiserem, não muda nada. Israel e sua populaçao está em ‘modo de sobrevivencia’. Vão ficar um bom tempo. Negociações de paz com a Arabia Saudita foram para o vinagre. Erdogan sonha em criar um bloco regional turco. Quer acabar com os curdos. USA esta em plena crise migratoria, pelo menos duas duzias de pessoas incluidas na lista de monitoração de terroristas foram presas na fronteira com o Mexico. Muita chance de alguem ter passado. E, como diria o tio Stalin, uma morte é uma tragédia, um milhão é estatistica.

  4. O obvio precisa ser dito para incluir os cognitivamente prejudicados. Israel e sua população não são ‘santos’. Os kibbutzim não são exatamente um ‘paraiso socialista’. Tanto que utilizavam mão de obra tailandesa. Que também foi massacrada. Sem problema. Como disse um terrorista para uma mãe que tinha acabado de perder um filha ‘está tudo bem, agora ela está com Allah’. Alas, é mais um problema que não ‘se resolve conversando’.

  5. ‘É a defesa que de os crimes sofridos por um povo no passado não dão salvo conduto para que um Estado realize crimes no presente.’ Vide o texto. ‘Um massacre que nada mais é do que a sequência intensificada do que vem ocorrendo nas últimas cinco décadas.’ ‘Coitadinhos’ podem massacrar a vontade?

  6. ‘A defesa da luta do povo palestino é a defesa de que todas as vidas têm valor.’ Os 1400 mortos pelo Hamas mostram que isto não é verdade. Dai vem alguem e diz que ‘são uma minoria de fanaticos’. Pois é.

  7. ‘[…] trezentos judeus presos pelo governo estadunidense […]’. Distante 10 mil quilometros longe é facil. Não é na cabeça deles que chove foguetes. Nem tiveram parentes mortos. Da hipocrisia a covardia.

  8. ‘[…] uma operação discursiva hipócrita […]’. Bem basico, se me chamarem de hipocrita vou dormir na pia. Só de meia e mascando bombril. Para haver ofensa é necessario dar importancia a opinião de quem ofende. As vezes se passa muito perto de um portão na rua e algum cachorro acoa provocando susto. Passa o sobressalto e o incidente é esquecido. Rapidamente.

  9. Alas, truquezinho bastate do gosto da esquerda. Uma provocação, uma reação. A reação é transformada em ‘agressão gratuita’ e o papel de vitima é assumido.

  10. Não é um campeonato de ‘superioridade moral’ e nem de quem ‘mata menos crianças’. Guerra é duelo, o mais forte vence quase sempre. Simples assim. Quem é bom para bater é bom para apanhar.

  11. Para começo de conversa, c@g@ndo para Salamargo. Pessoal que passa a vida esfregando a barriga numa mesa dentro do ar condicionado tende achar importante quem faz o mesmo e atinge maior notoriedade. Ganhou o Nobel de Literatura, e daí? É só sair na rua de qualquer pais e perguntar a 100 pessoas se leram algum livro dele. Aposto que a maioria não via saber quem é.

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