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O adeus ao Filósofo da Libertação – por Leonardo da Rocha Botega

Em honra a Enrique Dussel, que “segue imprescindível em sua eternidade”

Em 1941, o artista hispano-uruguaio Joaquín Torres-Garcia criou uma das mais significativas pinturas da América Latina. A “América Invertida”, como popularmente passou a ser conhecida, trouxe um mapa da América do Sul que fugia do padrão que nos acostumamos a ver de forma acrítica a partir dos bancos escolares. A Patagonia, região do extremo sul da Argentina, estava apontada para o norte.

A imagem era uma referência direta à necessidade dos sul-americanos se pensarem autonomamente, fugindo dos padrões impostos pelos centros do poder global. A proposta vinha ao encontro do manifesto “Escola do Sul”, lançado por Torres-Garcia em 1934, que tinha como principal diretriz “Nosso Norte é o Sul”. Naquele mesmo ano, no dia 24 de dezembro, nasceu em Mendonza, na Argentina, Enrique Domingo Dussel Ambrosini.

Licenciado em Filosofia em 1957, pela Universidade Nacional de Cuyo (Mendonza-Arg.), e em Estudos da Religião, pelo Instituto Católico de Paris, em 1965, doutor em Filosofia pela Universidade Complutense de Madrid, em 1959, e em História pela Universidade Sorbonne de Paris, em 1967, Enrique Dussel foi um dos principais responsáveis por aprofundar filosoficamente aquilo que Joaquín Torres-Garcia propôs no campo artístico-estético.

Dussel propôs a redefinição das Teorias Críticas da Modernidade tomando como ponto de partida as perspectivas das “vitimas” ou do “outro”. O olhar daqueles sujeitos que ao longo de cinco séculos foram silenciados pelo processo histórico de dominação imposto pela modernidade. Um silenciamento que o próprio Dussel sentiu na pele. No conturbado ano de 1973, o filósofo, crítico da fascistização da sociedade argentina, sofreu um atentado em sua própria casa. Dois anos depois, após ser expulso da Universidade Nacional de Cuyo por conta dessas mesmas críticas, exilou-se no México.

Em 1977, Dussel publicou sua grande obra “Filosofia da Libertação”. Nela defendeu a importância dos espaços geopolíticos para a produção do conhecimento. Nas suas palavras, “o pensamento que se refugia no centro termina por ser pensado em uma única realidade”. Foi justamente este pensar que se impôs com o paradigma colonialista-eurocêntrico que separou o mundo, desde 1492, entre “um norte desenvolvido e um sul empobrecido”.

Esta separação determinou a existência de sujeitos que são pensados como um “não ser”, um “nada”, um “bárbaro”, um “sem sentido”. Sujeitos que habitam à margem da racionalidade do colonizador e por isso devem ser conquistados, domesticados, dominados em suas “inferioridades”. Uma dominação que adquiriu várias nuances que se sustentam no racismo, no machismo, no imperialismo, no colonialismo e na exclusão social. Foi contra esta lógica binária do “eu” e do “outro”, do “civilizado” e do “bárbaro”, do “colonizador” e do “colonizado”, que Dussel levantou sua voz e sua escrita.

Enrique Dussel faleceu no último dia 5 de novembro, aos 88 anos. Faleceu em um contexto histórico onde o paradigma eurocêntrico, que tanto criticou, tem dado sinais de esgotamento. Um contexto histórico onde o Sul Global luta cada vez mais para afirmar sua existência. Em um mundo em transição onde, mesmo agonizante, o pensamento hegemônico ainda tem forças para impor uma geopolítica cognitiva que define que as vidas ucranianas importam mais do que as vidas palestinas, Dussel segue imprescindível em sua eternidade.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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7 Comentários

  1. Cereja do bolo. Vermelhos falam muito da corrupção de Bibi. Corrupção que corre solta na Ucrania, mas segundo a midia não existe. Corrupção que no Brasil é ‘a criminalização da politica’.

  2. Hamas poderia ter atacado somente as instalações militares israelenses. Não bastava, tinham que extrapolar para o terrorismo. Inclusive no Brasil muitos falaram que ‘caiu o mito da invencibilidade do Exercito Israelense’. Pois então, derrotem o mesmo então. Imaginaram uma união dos paises arabes para salvar Gaza? Pensaram errado. Mais, um bando de fundamentalistas islamicos atacando o unico pais ‘democratico’ da região.

  3. Pensamento hegemonico. Geopolitica cognitiva. ‘[…] as vidas ucranianas importam mais do que as vidas palestinas […]’. Diria que tanto vidas ucranianas e palestinas tem o mesmo valor, nenhum. Embora seja compreensivel os motivos pelos quais a Russia invadiu a Ucrania, ela foi invadida. É uma guerra por procuração entre Otan e a Russia. Se alguém decidiu que as coisas poderiam chegar neste ponto é porque não estavam preocupados com as mortes. No imaginario é um pais ‘democratico’ sendo invadido por uma ‘ditadura’.

  4. ‘[…] o Sul Global luta cada vez mais para afirmar sua existência.’ Mudar o nome do Terceiro Mundo por algo politicamente correto muda absolutamente nada. ONU já não funciona mais, um ‘sindicato’ dos que não chegaram lá não deve funcionar. São muitas caracteristicas diferentes com interesses diferentes. India tem problema de fronteira com Paquistão e China, por exemplo. Mudança da matriz energetica mundial vai ferrar com o Oriente Medio (se nada for feito). Como o Mercosul, muito discurso, pouco resultado. Exceção é o dinheiro que entra no bolso de alguns.

  5. Europa dá sinais de decadencia. As sociais democracias tendem a ser substituidas e o que vem não parece ser ‘melhor’.

  6. ‘[…] onde o paradigma eurocêntrico, que tanto criticou, tem dado sinais de esgotamento.’ Como tudo na esquerda tem suas contradições e hipocrisias. O ‘eurocentrismo’ só existe em parte da academia, é um espantalho. Ignora Russia, China, India e outros. As antigas colonias na Africa diziam que o problema era o ‘explorador estrangeiro’. Quando este foi expulso degeneraram em lutas tribais, corrupção, ditaduras e outras barbaridades. Resultado foi pobreza, mas a culpa continuou sendo do ‘colonizador’. Sempre ‘vitimas’ dos ‘outros’.

  7. Um ilustre desconhecido. Não de graça, publicação mais recente citada no texto é de 77. Discurso ultrapassado cheio de ‘ismos’. Menos mal, quanto mais os vermelhos insistem no discurso setentista, mais parecem malucos e irrelevantes. Melhor ainda, não conseguem se renovar por pura falta de capacidade.

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