Cem anos sem o homem que abalou o mundo – por Leonardo da Rocha Botega
O centenário da morte de Lenin, que pregava ‘Paz, Pão e Liberdade’ para todos
“Eu viajava num dia de janeiro de 1924. O trem irrompia fora dos túneis, em meio às imensas paisagens da montanha cintilante de neve, onde subitamente desciam os sombrios exércitos de abetos. Alguém, no compartimento cheio de homens corpulentos e tranquilos, desdobrou um jornal e vi: Morte de Lenin. Depois esses homens falaram dessa morte com o sentimento de que partia alguém único e muito grandioso”.
Foi desta forma que Victor Serge soube da morte de Vladimir Ilich, o Lenin, então chefe do governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A primeira vez que o viu pessoalmente foi na primavera de 1920, quando em plena guerra civil ocorria o Segundo Congresso da Internacional Comunista. Na ocasião, estava em uma das salas do local onde o Congresso se realizava, tomando um chá com dois camaradas, quando Lenin adentrou no recinto cumprimentando de uma forma muito amável os amigos.
Lenin era a imagem da simplicidade. Vestia um jaquetão velho dos tempos de exílio, trazido provavelmente de Zurique. Morava em um pequeno apartamento destinado aos empregados do Kremlin. No inverno, assim como a maioria da população russa que vivenciava as dificuldades da guerra, não tivera aquecimento. Esperava sua vez quando ia ao barbeiro, renegando qualquer tipo de privilégio. Não demonstrava qualquer gosto pela autoridade, apesar de se saber “o principal cérebro do partido”.
O líder da revolução queria mesmo era a popularidade de um grande tribuno, “ratificado pelas massas, sem aparato nem cerimonial”. Exigia um trabalho bem feito e imediato, com a pressa necessária para a consolidação da nova ordem. Exigia também o respeito às novas instituições, mesmo que ainda frágeis. Naquele mesmo dia, havia discursado por horas no Congresso com a voz de um homem simples que falava honestamente, apelando somente a razão das pessoas, aos fatos e a necessidade.
Victor Serge afirmava que Lenin trouxera uma consciência política mais clara e mais determinada a um imenso movimento de massas tateantes. Com as palavras “Paz, Pão e Liberdade”, sintetizou a vontade da maioria da população de uma Rússia devastada pela Primeira Grande Guerra. Palavras estas que conduziram “os dez dias que abalaram o mundo”, muito bem contados por John Reed no seu livro clássico, transformando Lenin em uma das pessoas mais odiadas pelo reacionarismo.
Lenin diferenciava-se de outros bolcheviques por não aceitar a autossuficiência dos conceitos abstratos. Aparava sua práxis política na realidade, na concretude do cotidiano, na sua capacidade de conectar a conjuntura vivenciada com a estrutura que a condicionava.
Foi assim que, diante dos efeitos devastadores de uma Grande Guerra Mundial e da Guerra Civil, conduziu a transição do chamado Comunismo de Guerra para a Nova Economia Política – NEP, buscando dar condições materiais para o início da superação do atraso econômico da Rússia.
Foi a NEP que consolidou a vitória da Revolução. Foi a dialética e não o pensamento fossilizado, que tomou conta de vários setores das esquerdas, quem espantou a contrarrevolução tzarista. Não se muda a realidade sem o apoio popular. Não há apoio popular sem que a população sinta que sua situação está melhorando. Não se muda a situação apenas com dogmas. Essa foi a grande lição de Lenin.
Lenin morreu em 21 de janeiro de 1924. Sete décadas após a vitoriosa Revolução de Outubro, o dogmatismo sufocaria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A concepção de que o Estado se bastaria em si mesmo foi substituída por uma nova dogmática onde o mercado se basta em si mesmo.
Cem anos após a sua morte, o mundo tem se demonstrado tão instável como o era em seu tempo. A paz segue abalada, o pão segue irreal para boa parte da população mundial e a liberdade parece cada vez mais um simulacro do que uma realidade.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
‘ Sete décadas após a vitoriosa Revolução de Outubro, o dogmatismo sufocaria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.’ Dezenas de anos e de milhões de mortos pelo regime. Os adversarios ganharam a paz de uma cova rasa, pão faltou muitas vezes e liberdade só para aplaudir e aprovar o que os ditadores decidiam.
‘Lenin era a imagem da simplicidade. Vestia um jaquetão velho dos tempos de exílio, trazido provavelmente de Zurique. Morava em um pequeno apartamento destinado aos empregados do Kremlin.’ Praticamente um Mujica para quem acredita na propaganda.
‘Lenin morreu em 21 de janeiro de 1924.’ Foi tarde. Infelizmente são só 100 anos e não mais.