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Holocausto, Holocaustos – por Leonardo da Rocha Botega

Pode um evento histórico traumático ser comparado? Esta é a pergunta que mais frequentemente tem sido feita aos historiadores desde a declaração do presidente Luís Inácio Lula da Silva no último dia 18 de fevereiro, em Adis Abeba, na Etiópia. Ao fazer uma analogia entre o massacre que o governo de Israel vem fazendo na Faixa de Gaza e o Holocausto judeu, o presidente tocou num ponto nevrálgico do longo conflito Israel e Palestina: as semelhanças históricas.

O historiador Marc Bloch chamava atenção para o fato de que comparar em ciências humanas é “procurar, para as explicações as semelhanças e diferenças patenteadas por séries de natureza análoga, tiradas de meios sociais diferentes”. Para o fundador da Escola dos Annales havia duas formas de fazer comparações históricas: entre sociedades vizinhas que vivenciam um mesmo tempo histórico; e entre sociedades separadas no tempo e no espaço que vivenciaram situações análogas.

O primeiro tipo de comparação pressupõe um menor risco anacrônico, porém o segundo tipo, apesar de mais arriscado, permite a verificação de constâncias. Na longa duração da constituição da modernidade capitalista uma das principais constâncias tem sido os genocídios. A própria modernidade foi parida com o genocídio dos povos indígenas americanos.

O antropólogo Russel Thornton, estudioso da demografia histórica dos povos indígenas e autor de “American Indian Holocaust and Survival: a Population History Since 1492”, destaca que é impossível observar os ocorridos nas Américas nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX e não identificar aquele processo como um genocídio, tal qual a definição aprovada na Convenção da ONU em 1948. Vejam que o autor, no título de sua obra, utiliza o termo “Holocausto dos Índios Americanos” para caracterizar a morte sistemática de aproximadamente cinquenta milhões de habitantes da América Pré-colombiana.

Quem também utiliza o termo Holocausto para caracterizar uma violência histórica ocorrida em um período anterior ao Nazifascismo é o historiador Mike Davis. Em seu livro “Holocaustos Coloniais: a criação do Terceiro Mundo”, Davis caracteriza desta forma a combinação entre o “El Niño”, a brutalidade colonial e a expansão do capitalismo que produziu uma grande catástrofe no final do Século XIX. Aproximadamente cinquenta milhões de pessoas morreram em países como Brasil, Índia, China, Etiópia, Coreia, Vietnã, Filipinas e Nova Caledônia (território francês na Oceania).

A publicação britânica The Observer considerou “Holocaustos Coloniais” como uma obra redefinidora da forma de pensar o projeto colonial europeu. No lugar do “orgulho inglês” da Era Vitoriana, Mike Davis apontava um catálogo de crueldades, justificadas pelo liberalismo econômico e pelas teorias raciais e eugênicas que o acompanharam. Conforme a filósofa Hannah Arendt, o imperialismo e o neocolonialismo produziram as bases do que viria a ocorrer na Europa algumas décadas depois com o Nazismo e a perseguição aos judeus, homossexuais, Testemunhas de Jeová e outras minorias.

Em 1948, Hannah Arendt, assim como Albert Einstein e outros intelectuais judeus, denunciaram o perigo que representava o nacionalismo sionista propagado pelo Tnuat Haherut (Partido da Liberdade). Em carta enviada ao jornal The New York Times alertaram para o fato de que o Tnuat Harerut ser “um partido político muito parecido em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazistas e fascistas”. Vinte e cinco anos depois, a organização teria papel fundamental na fundação do Likud, partido do atual primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu.

Hannah Arendt foi execrada por esse mesmo sionismo quando, em seu “Eichmann em Jerusalém” publicado em 1963, constatou que, “quase sem exceção”, as lideranças judaicas cooperaram com os nazistas “de uma forma ou de outra, por uma ou outra razão”. A autora ainda afirma que sem essa cooperação o número total de vítimas “dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e 6 milhões de pessoas”. Como não podia ser chamada de antissemita, Hannah Arendt passou a ser considerada uma traidora.

Assim como Hannah Arendt, uma grande gama de intelectuais como Albert Memmi, Aimé Césaire, Franz Fanon, Samir Amin, Domenico Losurdo, Achille Mbembe e Grada Kilomba, também apontam a constância entre o colonialismo europeu e o extermínio judeu pelos nazistas. Em ambos os fenômenos estavam presentes o expansionismo imperialista e o racismo. A grande diferença que apontam, principalmente os intelectuais africanos ou de origem africana, é “a raça” das vítimas.

É esta mesma “raça” das vítimas que promove a inoperância das nações ocidentais diante da ação do governo de Netanyahu na Faixa de Gaza. O genocídio que o Estado de Israel vem promovendo atualmente na Faixa de Gaza (e de forma contínua em todo o território palestino ao longo das últimas sete décadas) pode muito bem ser considerado mais uma constância da longa duração da modernidade. Os elementos colonialistas, expansionistas e racistas estão ali presentes. O fato de a geração de opressores do hoje ter alguma ligação com a geração dos oprimidos de ontem, não impõem nenhuma barreira moral à comparação histórica.

Os eventos históricos não devem ser sacralizados, por mais traumático que tenham sido. Como bem escreveu em sua rede social o professor Arthur Lima de Avila, “todo evento histórico é único, todo evento histórico é comparável e nenhum evento histórico, em que pese sua possível carga inaudita, é sagrado. Comparar o extermínio em Gaza com o Holocausto não é nem incorreto, nem moralmente perverso: é levar a sério o ‘nunca mais’”. É em nome de um “nunca mais”, que sirva para todos os grupos étnicos, que falar em Holocausto do Povo Palestino não é apenas possível, como também eticamente necessário!

Nota de fim de texto:

Enquanto escrevo estas linhas, duas ações promovidas pelo Exército de Israel repercutem no mundo todo: 1) o ataque contra uma fila de distribuição de alimentos em Gaza que deixou dezenas de mortos e feridos; 2) o bombardeio aéreo contra um campo de refugiados em Rafah, fronteira com o Egito, que atingiu inúmeras barracas de lona ocupadas por famílias que migraram do norte da Faixa de Gaza empurradas pelo próprio governo de Netanyahu.

Como podemos classificar tais ações?

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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7 Comentários

  1. No espirito ‘nota de fim de texto’. Suécia andou tendo que acionar o exercito devido a violencia das gangues. Alemanha cometeu erros na mudança de matriz energetica, entrou em recessao. Bem estar social no UK esta a beira do colapso. Tudo isto com envio de dinheiro que não têm, a fundo perdido, para ajudar a Ucrania numa guerra que muitos dizem já estar perdida. Nos EUA recentemente entrou mais de uma população de Santa Catarina de imigrantes ilegais. Onde vai para ninguem sabe. Faltou a ‘noticia boa para fechar’. Rato Rouco arranjou uma penca de inimigos la fora, não só os israelenses. Uns que ele nem sabe que existem. Os vermelhos por total falta de capacidade de se adaptar aos dias atuais ficam fazendo o que sempre fizeram. Darwin já escreveu o que acontece com quem não se adapta.

  2. Resumo da opera: baboseira toda é para ‘justificar’ a fala de Molusco com L., abstemio, honesto e famigerado dirigente petista. Seguiu a linha da militancia (academica, o resto mal tem condições de raciocinar sozinha) e falou m. Simples assim. A neutralidade historica da diplomacia tupiniquim foi para o ralo. La fora é ponto pacifico que o governo brasileiro atual esta alinhado com Russia e China. A narrativa é que existe um eixo das ‘democracias’ (Ianquelandia e Europa Ocidental) e um eixo das ‘ditaduras’ (não precisa dizer quem é). Por aqui também existe a narrativa do ‘sul global’ (oprimidos?) contra o norte mais desenvolvido (opressores?). Finalidade é ‘mandem dinheiro’ mesmo com a corrupção comendo solta. Obvio que não vai rolar, pura cortina de fumaça.

  3. ‘Os elementos colonialistas, expansionistas e racistas estão ali presentes. O fato de a geração de opressores do hoje ter alguma ligação com a geração dos oprimidos de ontem, não impõem nenhuma barreira moral à comparação histórica.’ Na cabeça dos vermelhos a simplicidade é o que importa. Tudo se resume a ‘opressores’ e ‘oprimidos’. Colonizadores são opressores. Colonizados ‘oprimidos’. São ‘defensores dos oprimidos’. Os ‘opressores’ estão sempre errados, os ‘oprimidos’ sempre certos. Tudo de mal que acontece para os ‘oprimidos’ é culpa dos ‘opressores’ mesmo que não tenham tomado nenhuma medida para provocar o resultado. Tem ‘uma divida historica’, se ‘omitiram’ e deixaram algo de ruim acontecer. Começa uma guerra civil na Africa primeira coisa que buscam é quem colonizou a area, é o ‘culpado’.

  4. O amontoado de textos citado é totalmente irrelevante. Simples assim. Cortesia da academia, se encastela e acha que tudo é questão de ‘argumentação’. Enquanto isto o mundo segue girando. Sem falar nas bobagens. Harendt, por exemplo, ‘as lideranças judaicas cooperaram com os nazistas’. Historia contada da frente para tras. As lideranças judaicas sabiam que seriam exterminadas junto com seu povo? Alas, tem um grande ‘se’ nesta historia e ‘se’ eu tivesse um par de asas grande e só comesse carniça seria um corvo. Alas, no estupro não se pode culpar a vitima, no genocidio pode?

  5. Genocidio é um termo cunhado por um advogado judeu polones por volta de 1944. Atualmente existe a Convenção do Genocidio. Africa do Sul acionou Israel na Corte Internacional de Justiça com apoio do governo brasileiro. Decisão, em termos gerais, foi que Israel tomasse as medidas para evitar genocidio. Questões surgiram sobre lawfare e politização do Tribunal. Ou seja, deu nada.

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