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Cívico-militar (?) – por Orlando Fonseca

De alguns anos para cá, passou-se a denominar o movimento que trouxe o estado de exceção ao Brasil, a partir de 1964, como golpe cívico-militar. Aquele levante (nos ensina a História) não foi uma ação isolada das forças armadas, houve a cooperação da sociedade civil organizada. Por isso, a simples menção de uma tal “escola cívico-militar”, para algumas pessoas, como eu, causa um arrepio, o qual já nos põe apreensivos. Como educador, como cidadão que vivenciou aquele período tenebroso, não posso aceitar passivamente que se misture formação para a cidadania de crianças e adolescentes com formação para a guerra (ou para o que for, em que aparatos bélicos sejam necessários). De tal modo que a mistura desses dois propósitos, a vida civil e a formação militar, não me parece uma proposta aceitável quando se fala em educação.

Em função de uma centralidade hierarquizada de comando, a formação militar é baseada na disciplina. Mas não é disso que se fala quando se trata de formar cidadãos para a vivência na democracia, na qual se deve estruturar a noção de igualdade, de livre arbítrio de respeito à ordem social – não à voz de comando. De uma tal mistura de propósitos só pode surgir a noção de uma educação baseada na disciplina militar, e não no aprendizado, não na capacidade de aprender a raciocinar, de ler e interpretar o mundo/a realidade. Teríamos aí uma pedagogia contrária ao objetivo mais elevado na educação que nos legou o processo civilizatório, qual seja, o de promover o protagonismo do aprendiz, para que seja cônscio de seu papel na sociedade e o assuma com responsabilidade, com capacidade de expressar sua opinião e cooperar com o bem de todos.

A disciplina é uma virtude necessária, mas o mundo mudou, de modo que do passado nem todas as respostas são úteis hoje. Lembremos que, ainda no início do século passado, entendia-se como prática educativa o uso da palmatória para manter a disciplina. Introduzida pelos Jesuítas, foi abolida do meio escolar apenas com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Durante boa parte da segunda metade do século XX, ainda se confundia autoridade educativa com autoritarismo. Foi só no início deste século que se proibiu definitivamente os tratamentos degradantes em educação: em 2003, um Projeto de Lei, com a intenção de proibir os castigos físicos, tratamentos cruéis ou degradantes foi apresentado na Câmara de Deputados. O que temos hoje é uma crise de autoridade, mas não se trata exclusivamente de autoridade legal, militar ou policialesca. O que há, trazida com os excessos da mídia eletrônica, é uma deturpação da autoridade do saber: crianças e jovens, por confiarem mais na internet (Google ou redes sociais), colocam em cheque a autoridade de pais, tutores e mestres. Por isso temos uma ascensão da ignorância voluntária, das decisões tomadas pelo senso comum, o que fez proliferar os negacionismos de toda ordem.

É preciso buscar as boas práticas de outros países que se desenvolveram, sobretudo, pelo investimento na educação. Como a Finlândia, modelo de educação no mundo atual, que prima por uma educação libertária. É preciso buscar respostas para este tempo, para fazer frente ao vício generalizado em smartphones e afins; à crise na formação dos professores, por ter havido mudanças nos modos de aquisição do conhecimento; à precarização do sistema público, que gera desinteresse pela vocação à docência. Seguramente, não é com uma reforma que a ditadura trouxe, tirando horas de disciplinas como filosofia, para colocar Moral e cívica no currículo. Basta investimento maior para equipar escolas com instrumentos eficazes no ensino; remunerar bem os trabalhadores na educação, trazer as melhores referências, tanto no passado, quanto em outros lugares em que a educação produz frutos para a cidadania, e a promoção da paz.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.

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24 Comentários

  1. Resumo da opera. Tanto faz. E Brasil, esculhambado mesmo. Tem tanta coisa errada na educação que se trata de assunto secundário. Simples assim.

  2. Velharada analogica não gosta da internet. Google e redes sociais. Ressalta a inadequação e o anacronismo. Estão ‘fora da brincadeira’.

  3. ‘[…] não posso aceitar passivamente […]’. Narcisismo dos vermelhos é lendário. Alas, escrever um texto que poucos irão ler e menos ainda darão importancia não chega a ser algo ‘ativo’.

  4. Segundo o professor aposentado o melhor para a educação é ‘[…] remunerar bem os trabalhadores na educação, […]’.

  5. O mais subdesenvolvido de todos, França. Cadets de la Défense. Atende jovens entre 12 e 16 anos fora dos horarios escolares. Estabelecido desde 2008 é um programa civico do Ministerio da Defesa dentro do plano de igualdade de chances. Objetivos? Engajamento e disciplina de vida. Auto-afirmação. Gosto pelo trabalho e senso de esforço. Direitos e deveres. Patriotismo. Coesão. Atividades educativas, culturais e esportivas.

  6. Escolas cívico militares são devaneios dos “viúvos da ditadura”, hoje mais conhecidos como Golpistas. Essas “escolas” são tanto ou mais doutrinadoras que aquelas, supostamente, dominadas pela “temida esquerda”. É o canto da sereia em que muitos acreditam, até aqueles trouxas que nunca vão conseguir colocar seus filhos nela. Porque, nas que existem atualmente, tem cota(pra eles pode) pra filhos de militares.

    1. Kuakuakuakuakua! Duas coisas diferentes. Escolas civico militares não se confundem com os Colegios Militares. Estes foram criados para receber os filhos de militares. Os pais podem ser tranferidos (oficiais a cada dois anos) e o padrão de ensino é o mesmo. Não é ‘cota’. Quando sobram vagas são preenchidas via concurso publico. Mesmo modelo dos Lycees de la Defense da terceiromundista França. Alas, efeito colateral, por conta dos certames muitos jovens estudam mais e/ou fazem cursinho. Mesmo sem aprovação acabam com um certo beneficio.

  7. Canadá, pais subdesenvolvido, tem algo semelhante. Cadetes Reais do Exercito Canadense. Objetivo é encorajar os atendidos a se tornarem cidadãos ativos e responsaveis no seio da sociedade, desenvolver qualidades de civismo e liderança, promover atividade fisica e estimular o interesse nas Forças Armadas.

  8. Em alguns paises a formação militar existe. Belgica, pais subdesenvolvido, tem o Corpo Real de Cadetes de Marinha, atende jovens entre 12 e 21 anos. Levam as criaturas para um navio e ensinam a ‘tocar o barco’.

  9. ‘É preciso buscar as boas práticas de outros países que se desenvolveram,[…]’. Só porque alguém ignora a existencia de algo não significa que ele não exista. Algo a ser lembrado, ‘não há o que não haja’.

  10. ‘[…] foi abolida do meio escolar apenas com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.’ Cascata. Pratica caiu em desuso muito tempo antes. Objetivo é confundir o marco legal com a realidade, algo que raramente pode ser associado. Mas tem trouxa que acredita.

  11. Há quem diga que um exercicio valido é mandar a criança arrumar a propria cama. Funciona nos meios militares. Ensina atenção ao detalhe. Quando bem feito dá uma sensação de realização que se propaga durante o dia.

  12. Disciplina é um valor para a vida. E fazer aquilo que não se esta com vontade de fazer. E abdicar do caminho mais facil. E o(a) atleta de judo cair duzentos tombos por dia. O remador praticar atividade no frio até doerem os braços. E chegar em casa da aula e estudar ao inves de ficar assistindo Tik Tok mesmo sem prova marcada. Disciplina é algo a a ser aprendido. Para ser utilizado quando não tem mais alguém dizendo o que é que tem que ser feito.

  13. ‘[…] promover o protagonismo do aprendiz, para que seja cônscio de seu papel na sociedade e o assuma com responsabilidade, com capacidade de expressar sua opinião e cooperar com o bem de todos.’ O que aconteceria com um(a) aluno(a) do jornalismo da UFSM ou do Centro de Educação ou do CAL que entrasse na sala de aula com uma camisa do Cavalão? Alas, poderia contar historias (é sabido o que fizeram em verões passados) com onibus cheios de testemunhas. Aluno discute com professor. Final do semestre uma unica criatura é reprovada (ele mesmo). Professor vira reitor de uma conhecida instituição de ensino.

  14. ‘[…] a noção de uma educação baseada na disciplina militar, e não no aprendizado, não na capacidade de aprender a raciocinar, de ler e interpretar o mundo/a realidade.’ Como se as escolas de hoje não fossem fabricas de analfabetos-funcionais. Não sabem ler, operações basicas de matematica ou interpretar um texto.

  15. ‘Em função de uma centralidade hierarquizada de comando, a formação militar é baseada na disciplina.’ Exatamente o mesmo que acontece nos partidos vermelhos. Simples assim.

  16. ‘[…] misture formação para a cidadania de crianças e adolescentes com formação para a guerra (ou para o que for, em que aparatos bélicos sejam necessários).’ Fake News. Até onde sei não existe ‘formação para guerra’.

  17. Logo este papinho d”os malvadões acordaram num dia e resolveram trocar o governo a troco de nada e acabar com a democracia’ e ‘vermelhos resistencia democratica’ só funciona com gente muito ignorante ou muito burra.

  18. Quinto elemento? Legitimidade. No sentido de validade, justificação. Sem isto o grosso do funcionalismo publico, policias, etc. Ameaça do comunismo não era coisa da Globo. Cuba 1962. Guerra do Vietnam em curso (seguindo a Coreia). Guerra em Angola. No Laos. Nicaragua. Congo. Cambodja.

  19. ‘[…] houve a cooperação da sociedade civil organizada.’ Na serie ‘The Crown’, obra baseada em fatos reais (obvio que não tiveram acesso ao que foi dito em reuniões fechadas), Lord Mountbatten enumera os 5 requisitos para um golpe. Controle da midia, controle da economia e controle dos orgaos administrativos. Este ultimo gera a necessidade do quarto elemento, lealdade dos militares.

  20. ‘]…] passou-se a denominar o movimento que trouxe o estado de exceção ao Brasil, a partir de 1964, como golpe cívico-militar.’ Sim, algo que aconteceu de forma ‘expontanea’. Obra de atores indeterminados.

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