Educação especial e erros de diagnóstico – por Demetrio Cherobini
“O lado perverso - muito comum - dos laudos de ‘deficiência intelectual’”
Em geral, as pessoas não questionam os laudos de “deficiência intelectual” ou “autismo” fornecidos pelos médicos. Por quê? Para o senso comum, a medicina da saúde mental possui um “saber absoluto”, infalível e acima de suspeitas acerca de seus métodos, conceitos e diagnósticos. Infelizmente, a educação especial e a escola contribuem para a reprodução desse mito quando se recusam a analisar criticamente os laudos e os estudantes que lhes chegam. Poderia ser diferente? É preciso sempre refletir.
É um erro achar que os médicos estão sempre certos em suas conclusões. Eles erram tanto qualquer outra categoria profissional, se não mais. Quem tiver dúvidas a respeito basta digitar “erros médicos” no Google e ver o que aparece, ou então aprofundar a leitura em artigos e livros especializados sobre a história da medicina.
Outro engano é acreditar que tal diagnóstico vai necessariamente beneficiar a educação da criança. Nem sempre é assim. Um laudo desse tipo gera, muitas vezes, expectativas e comportamentos negativos nas pessoas que o leem.
Os pais, por exemplo, podem tornar-se superprotetores e se sentirem obrigados a realizar todas as “vontades” dos filhos – uma péssima atitude, pois produz crianças mimadas, manhosas e mal-acostumadas, que querem, na escola, que todos satisfaçam a seus caprichos egocêntricos.
Os professores de sala regular, por sua vez, ao saberem que tal estudante é “deficiente” – ou “especial”, conforme o jargão -, podem vir a se desobrigar de maiores esforços na sua educação e a relegar o ensino dessa criança exclusivamente aos educadores especiais da escola. Ou seja, passam a não reconhecer esses alunos como seus, mas sim do AEE.
Mas isso ainda não é o pior. Pode acontecer algo mais problemático. É quando o próprio estudante que recebe o diagnóstico de “deficiente intelectual” ou “autista” aprende a usar o laudo para se desincumbir das exigências escolares – por passar a não acreditar em seu potencial, devido ao laudo, ou simplesmente por não querer se esforçar.
A esse respeito, dou como exemplo a história que me contou uma colega professora de escola estadual. Essa professora tem um aluno que recebeu um desses diagnósticos psiquiátricos que estigmatizam para sempre a condição mental do sujeito. O garoto tem talento, compõe músicas, canta, se expressa e se comunica bem com a juventude de seu entorno, interpreta as canções em vídeo, já publicou até um clipe no Youtube com uma de suas produções autorais.
Mas nas aulas não expressa o mesmo brilho, ao contrário: não estuda e nem se interessa pelo conhecimento escolar. A professora então disse ao jovem: “por que você não se esforça para aprender o conteúdo? Desse jeito, não vai passar de ano!” Ao que o garoto respondeu: “Não faz mal, professora. Eu boto um atestado e passo de ano”.
Eis o lado perverso – muito comum – dos diagnósticos de “deficiência intelectual” e assemelhados. Esse estudante aprendeu que basta “botar um atestado” para ser aprovado. Como aprendeu a agir assim? Talvez ele tenha de fato alguma dificuldade de aprendizagem, mas em que o diagnóstico o ajudou? A ter boa imagem de si, confiar nas suas capacidades, superar seus limites e ser responsável? Ou a criar uma autoimagem de incapaz – e, pior, a usar a malandragem do laudo para passar de ano sem estudar?
Para finalizar: tudo isso tem amparo legal. Sim, o Estado, que na LDB determina que as pessoas com necessidades especiais recebam educação de qualidade, é o mesmo que permite que esses sujeitos sejam aprovados, muitas vezes, sem aprender qualquer conhecimento elaborado. Em suma: são várias instâncias combinadas no objetivo não de formar, mas sim deformar para a vida – uma vida opaca, acanhada e muito aquém do que poderia ser. Qual a racionalidade disso tudo? Responda quem puder.
(*) Demetrio Cherobini, professor da rede municipal de Santa Maria, é licenciado em Educação Especial e bacharel e Ciências Sociais pela UFSM, mestre e doutor em Educação pela UFSM e pós-doutor em Sociologia pela Unicamp.
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