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HISTÓRIA. Cinema resgata memórias da ditadura civil-militar brasileira que não devem ser esquecidas

Docentes da UFSM, o filme Ainda Estou Aqui e a questão do regime autoritário

Por Fritz R. Nunes (com colaboração de Nathália Costa) / Da Assessoria de Imprensa da Sedufsm (*)

O sucesso do filme ‘Ainda estou aqui’ no Brasil, que levou mais de três milhões de pessoas às salas de cinema, somado com o inédito prêmio internacional “Globo de Ouro” para a atriz Fernanda Torres, que interpreta Eunice Paiva no longa que conta a história da família dilacerada pelo desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante a ditadura civil-militar, gera opiniões controversas nas redes sociais.

Contudo, não há como negar que o êxito da obra dirigida por Walter Salles extrapola os limites do impacto de uma mera cinematografia de qualidade que, aliás, o Brasil sempre teve, em épocas diversas. Em 1962, a Palma de Ouro em Cannes com ‘O pagador de promessas’. Na mesma década, Glauber Rocha, e o destaque mundial para o ‘Cinema Novo’. Em 1999, os diversos prêmios internacionais para ‘Central do Brasil”, apenas para ficar em três exemplos.

‘Ainda estou aqui’, baseado no livro homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva (filho do desaparecido político Rubens Paiva), serviu de forma importante para também reacender o debate sobre os crimes perpetrados pelo regime autoritário vigente em nosso país entre 1964 e o início de 1985. Joga luz, especialmente para as gerações mais recentes, sobre prisões arbitrárias, tortura, morte e impunidade daqueles que violaram os direitos humanos.

Glaucia Konrad, historiadora e professora do departamento de Arquivologia da UFSM, e que também foi integrante da Comissão da Verdade na UFSM, lembra que a temática da ditadura no cinema brasileiro não é recente, tanto na ficção ou nos documentários. Ela ressalta que foram lançados dezenas de filmes desde a década de 1960, que refletem nas telas, o cinema como importante instrumento de denúncia e memória sobre a Ditadura Civil-Militar no Brasil.  Para a pesquisadora, ‘Ainda estou aqui’ tem um significativo papel de estar movimentando o cinema brasileiro, com impacto mundial, sensibilizando muita gente sobre o Terrorismo de Estado acontecido no Brasil entre 1964 e 1985.

Gilvan Dockhorn, que é historiador, professor do departamento de Turismo da UFSM e pesquisador das temáticas relacionadas ao golpe civil-militar no Brasil e à memória, justiça e reparação, destaca, em primeiro lugar, a qualidade do filme. “Ainda estou aqui é um filme de excelência, um primor, quer tecnicamente em termos de narrativa audiovisual, quer na adaptação do roteiro”. Ele cita ainda outros aspectos de qualidade, tais como a atuação do elenco, a primorosa trilha sonora, a fantástica reconstituição de épocas passadas e a direção soberba de Walter Salles, que faz com que, na opinião dele, transforme o filme em mais interessante que o livro.

Para o historiador (foto ao lado), que também coordena o ‘Cineclube da Boca’ na UFSM, a obra de Salles ainda pode ser destacada como uma resposta aos detratores da cultura nacional e, especificamente, aos que criticam as produções brasileiras em um momento em que são comuns os ataques a artistas e produtores culturais.

A presença massiva de público nas salas de cinema e a repercussão nas mídias e redes sociais, no entendimento de Gilvan, despertou “uma parte da sociedade para o tema da ditadura e dos desaparecidos políticos, assunto que, fora dos meios acadêmicos e de militância, sofria um silêncio obsequioso”, sublinha ele.

Essa temática, conforme o pesquisador, retornou da pior forma ao debate público a partir de 2013, quando uma parte da sociedade passou a defender explicitamente uma visão positiva da ditadura civil-militar e a reivindicar uma nova intervenção dos militares na política, o que quase se efetivou no dia 8 de janeiro de 2023, quanto da tentativa golpista, que conforme revelação da Polícia Federal, foi articulada e engendrada, entre outros, por generais como Walter Braga Netto, Augusto Heleno, entre outros.

Todavia, diz ele, o filme, ao compartilhar o horror e o sofrimento da família Rubens Paiva, que é fruto da violência da ditadura, e mostrar também a luta de Eunice Paiva por justiça e reparação, “no mínimo leva o público se questionar acerca da validade de relativizar a democracia, de bradar pelo retorno dos militares com um olhar de simpatia ao período, a partir de falsas percepções.”

Gilvan Dockhorn acredita que sim, o filme desperta um olhar sobre o regime civil-militar e suas arbitrariedades, contudo, pondera que a história e a memória são narrativas em disputa: “o passado é tema de embate e o filme corrobora na visão crítica desse passado não laudatório ou saudosista”.

Impacto da obra e as possíveis responsabilizações

O impacto que ‘Ainda estou aqui’ está gerando, seja no Brasil, ou mesmo no exterior, pode fazer com que se volta a pensar em responsabilizações daqueles que violaram os direitos humanos durante a ditadura civil militar, perguntamos a Glaucia Konrad e a Gilvan Dockhorn.

Para Glaucia  (foto ao lado), o fato de o filme ter ultrapassado fronteiras pode ajudar a refletir, em termos de conjuntura política nacional e internacional, a respeito do perigo de retorno de governos ditatoriais de extrema-direita, de restrições de direitos e liberdades, tendo como um dos exemplos, o Brasil e a tentativa do golpe de 8 de janeiro de 2023. Nesse mesmo combo, a historiadora cita os governos de Javier Milei, na Argentina, e o retorno de Donald Trump, nos Estados Unidos.

Além disso, a pesquisadora avalia que ‘Ainda estou aqui’ representa uma memória e um alerta, principalmente, para as novas gerações “que são bombardeadas pelas fake news, pelo negacionismo e revisionismo, que tentam negar que tivemos uma ditadura civil-militar no Brasil”.  Glaucia frisa que as premiações e os holofotes que o filme tem conquistado “colocam em evidência o terrorismo de Estado praticado pela Ditadura e representa um alerta para a responsabilização dos autores dos crimes de violação dos direitos humanos, cabendo ao Estado o dever de investigar, punir, educar e não repetir”.

Gilvan Dockhorn não acredita que o sucesso do filme possa influenciar para uma punição aos que cometeram crimes durante a ditadura e que ficaram sob o manto da Anistia. “A comoção e sensibilização causada pela história dos Rubens Paiva não supera o fato de que nem as conclusões da Comissão Nacional da Verdade, que teve seu relatório final divulgado em 2014, nem mesmo as várias denúncias de abusos e violações, desde a divulgação do projeto ‘Brasil: Nunca Mais’, desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo sob a coordenação do Reverendo Jaime Wright e Dom Paulo Evaristo Arns, lançado em 1985, impediram que a Lei da Anistia de 1979 fosse usada como mecanismo de impunidade”.

O historiador lembra que a lei de 1979 impôs uma peculiar justiça de transição e foi condição inegociável para o transcorrer do processo de redemocratização pactuado “pelo alto”, com a saída dos oficiais militares da condução política, mas não da esfera de influência nos sucessivos governos, de Sarney a Lula. Para Gilvan, a não revisão da Lei da Anistia em 2010, depois de um pedido feito pela Ordem dos Advogados do Brasil e rejeitado pelo STF, revela que o tema da responsabilização e punição dos perpetradores de crimes e abusos na ditadura não é prioridade para o Estado brasileiro.

Ele acrescenta ainda que a responsabilização dos crimes contra a humanidade, abarcando não apenas as vítimas que fizeram oposição ao regime, mas o conjunto de afetados, tais como funcionários públicos, trabalhadores rurais, indígenas, movimento negro, etc., só será possível com políticas de memória efetivas, que tenham não apenas intuito reparativo e de revisão de lugares de memória, mas também que tenham dimensão pedagógica e punitiva…”

PARA LER A ÍNTEGRA, inclusive sobre a Comissão da Verdade da UFSM, CLIQUE AQUI.

(*) Fotos são de arquivo, com arte de Italo de Paula

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