A reparação e a verdade no caso Vladimir Herzog – por Leonardo da Rocha Botega
Pode-se afirmar: “um símbolo da própria luta pela frágil democracia brasileira”

“A tarde avançava, e com ela a agonia. Num momento impreciso, fez-se o silêncio que parecia impossível naquele inferno. Cessaram os gritos dos torturados, o som altíssimo do rádio, as campainhas estridentes, as vozes ásperas dos torturadores. […]. A noite caiu pesadamente naquele sábado, 25 de outubro. Vlado estava morto.” – Audálio Dantas. As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. p.217.
Passados quase 50 anos do episódio narrado acima, somente agora, em 31 de janeiro, a Justiça Brasileira concedeu a Clarisse Herzog, viúva de Vlado, o direito a reparação econômica pelo reconhecimento de Herzog como anistiado político. A decisão é de caráter liminar, provisório e urgente, cabendo recurso. Mesmo assim, é parte importante de uma longa batalha por verdade e reparação iniciada nos dias que se seguiram ao assassinado de Herzog pela Ditatura Civil-Militar.
Vlado, como era chamado Vladimir Herzog, foi assassinado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-Codi, órgão de repressão e tortura ligado ao II Exército em São Paulo, onde havia se apresentado voluntariamente para “prestar esclarecimentos”. Naqueles meses nebulosos de 1975, os agentes da ditadura direcionavam suas ações para dois alvos prioritários: os jornalistas considerados “subversivos” e o Partido Comunista Brasileiro. Diferentemente de outras organizações políticas de resistência, o Partido Comunista Brasileiro não aderiu à luta armada. A opção pela via pacífica fez com que o partido não fosse considerado o alvo principal no período em que a repressão se voltava à perseguição da guerrilha urbana e rural. Com a luta armada praticamente extinta, em 1974, conforme a estratégia definida pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE), o Partidão se tornou a bola de vez. Vlado havia aderido ao partido poucos anos antes de seu assassinato.
Valdimir Herzog era diretor do departamento de Telejornalismo da TV Cultura e professor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Apesar da forte censura que submetiam aos órgãos de imprensa, os agentes da ditadura consideravam a TV Cultura como um espaço “sem controle” e “tomado por infiltrados”. Por conta disso, a empresa pública vinha sendo vítima, ao mesmo tempo, de uma campanha de difamação e de uma intensa perseguição aos jornalistas que lá trabalhavam.
Inúmeros jornalistas, não apenas de TV Cultura, estavam sendo presos e torturados nas semanas que antecederam a morte de Herzog. Entre os jornalistas presos pela repressão estavam Paulo Markun, George Duque Estrada, Anthony de Christo, Frederico Pessoa da Silva e Rodolfo Konder, que foram testemunhas das torturas sofridas por Vlado. No dia seguinte, estes jornalistas foram chamados pelo chefe do DOI-Codi para “escreverem” que o companheiro de profissão era na verdade um agente soviético.
A “declaração” dos companheiros era parte do processo que marcou a “segunda morte” de Vlado: a montagem de uma versão mentirosa sobre o seu assassinato. Naquele mesmo dia, o II Exército distribuiu uma nota afirmando que o jornalista havia cometido suicídio. No laudo, forjado pela polícia de São Paulo, constava que Herzog havia se enforcado com “a cinta do macacão”. A informação ocultava um detalhe: o cinto do macacão dos presos no DOI-Codi, assim como os cadarços, era retirado por “precaução”.
Apesar da ampla divulgação da nota, contando inclusive com apoio de algumas grandes empresas da comunicação, a versão oficial não foi aceita. O rabino Henry Sobel, inclusive, diante das evidências de tortura no corpo, negou-se a sepultar Herzog no local destinado aos suicidas, conforme manda a tradição judaica. O velório e o enterro de Vladimir Herzog, bem como, o ato ecumênico que marcou o sétimo dia de seu assassinato, se tornaram grandes marcos na luta pelo fim da Ditadura.
Três anos depois, em 1978, a justiça brasileira reconheceu pela primeira vez que a versão oficial do II Exército não passava de mais uma das tantas mentiras contadas pelos agentes da ditadura. Em uma sentença corajosa, a Ditadura foi responsabilizada pela morte de Herzog. Em 2013, a família recebeu um novo atestado de óbito indicando a morte sob tortura. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por não investigar, julgar ou punir os assassinos de Vladimir Herzog.
A luta pela reparação e a verdade no caso Vladimir Herzog é um símbolo da própria luta pela frágil democracia brasileira. Para além da tardia e justa reparação econômica, a decisão do juiz federal Anderson Santos da Silva, da 2ª Vara Federal Cível de Brasília, ainda que liminar e provisória, é uma importante demonstração de que, apesar do negacionismo histórico, as vítimas do Terror de Estado ainda estão aqui para dizer que Nunca mais! não é apenas uma afirmação vazia.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
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