Educação Especial e Síndrome da Pequena Autoridade – por Demetrio Cherobini
Cientistas ainda divergem sobre a origem da anomalia, mas é fácil reconhecê-la

Um dos grandes problemas enfrentados no serviço público em geral, e na educação em particular, é quando, no curso corriqueiro dos encargos diários, se é levado a ter contato com uma enfermidade cada vez mais comum nos meandros das repartições: a Síndrome da Pequena Autoridade, uma disfunção que não acomete crianças ou adolescentes de nenhum tipo, mas sim adultos formados, conscientes, responsáveis pelo próprio comportamento, concursados e exercendo atribuições específicas.
Cientistas ainda divergem sobre a origem genética ou neurológica dessa singular anomalia, mas é fácil reconhecê-la em uma grande variedade de pessoas, pois engloba todos os gêneros e classes, raças e credos, idades e procedências, desde que empossadas em seus devidos cargos e dispostas nas diversas funções a que lhes cabe o exercício ordinário. Efetivamente, a Síndrome da Pequena Autoridade é bastante democrática em sua desventurosa abrangência insalubre.
O portador da Síndrome da Pequena Autoridade tem um prazer inconfessável em mandar. Excita-se ao dar as ordens e realiza primitivas fantasias toda vez que pratica esse ato por si tão cobiçado. Estufa-se e orgulha-se ao olhar de cima e dizer aos seus modestos obreiros o que devem fazer – mesmo, é claro, que eles já o saibam e já o façam, de maneira autônoma, por incontornável dever de ofício.
Para a Síndrome da Pequena Autoridade, mandar nunca é uma redundância. Ela experimenta, de fato, secretos intumescimentos ao exercer o seu declarado e muito amado poderzinho: o ego se lhe dilata, a autoestima se eleva, a garganta se relaxa e a respiração corre frouxa, como a de quem provou, no âmago do ser, o deslumbramento luxuriante de delícias obscenas.
A Síndrome da Pequena Autoridade não envia e-mails, ela prefere reuniões presenciais. Mandar frente a frente é sempre uma satisfação mais alta em comparação com as possibilidades abreviadoras da tecnologia. Dessa forma, todos ao redor são seus imprescindíveis tarefeiros. Há sempre algo que ela deve ordenar, decisões sublimes a tomar, programas maravilhosos a realizar – e ninguém, obviamente, para consultar.
Pois a Síndrome da Pequena Autoridade não dá ouvidos a ponderações de subalternos, em especial às que considera piores, isto é, que divirjam de suas rasas certezas. Ela deixa claro, desse modo, que não há outros seres pensantes em seu entorno: todos devem somente concordar – e, principalmente, fazer. E há sempre mais a ser feito, muito mais, porque na visão da Síndrome da Pequena Autoridade os seus servidores quase nunca fazem o quanto poderiam ou deveriam estar fazendo. Com a sua quantidade de trabalho, no entanto, ela está plenamente satisfeita.
A Síndrome da Pequena Autoridade pensa conhecer a totalidade dos caminhos decisórios e desagrada-lhe, sobretudo, o sujeito que se contraponha às suas trivialidades gerenciais. Mas é certo que há papeis que cabem aos seus pares submissos. O ápice do deleite da Síndrome da Pequena Autoridade é poder se fazer de vítima e dizer, em alto e bom som, perante o vulgo, sobre como é difícil ser a Pequena Autoridade. Pois ela sofre, em seu mundo interior, desafios prosaicos e o relato dramatizado dessas angústias é o ponto culminante de sua presumida bem-conceituada carreira.
Diga-se entre parênteses: a Síndrome da Pequena Autoridade gosta de estampar a ideia de que sofre por mandar, e quer, por isso, que os outros se compadeçam dessa sua inglória atribulação. A sua verdadeira excitação, no entanto, é mandar por mandar, ou seja, mandar com o propósito exclusivo e único de se perpetuar na posição de mando.
Há outras tensões com as quais se debate o indivíduo acometido dessa patologia exótica. O prazer de mandar, por exemplo, muitas vezes se encontra com o desagradável desejo de dar visibilidade abundante às suas decisões contingentes. É por esse motivo que há Pequenas Autoridades que gostam tanto de se exibir mandando, em páginas midiáticas de qualidade duvidosa ou portfolios de redes palatáveis ao senso comum. Mas é mais frequente que não queiram aparecer, a fim de não serem fiscalizadas por uma Pequena Autoridade maior e melindrosa, que investigue ou descubra uma brecha, um acochambramento qualquer, uma falha de base que faça com que a primeira Pequena Autoridade seja punida e evadida do carguinho que ocupa.
Isso porque a Pequena Autoridade se relaciona de maneira conflitiva com alguns de seus subtipos: não, certamente, a Pequena Autoridade Medicinal, a quem cultiva e idolatra com bisonha subserviência, mas sim a Pequena Autoridade Judicial, com a qual não gosta de se envolver e diante da qual se encabula.
Deve-se dizer, ainda, que a Síndrome da Pequena Autoridade não se preocupa exatamente com a qualidade ou a substânciado trabalho realizado, incapaz que é de conceber criticamente a justeza de certas práticas ou ações. Há que se tolerar tal sintoma, visto que sua condição lhe tolhe as luzes necessárias para operações lógicas mais ousadas e abrangentes. De fato, ela se regala apenas com a mera formalidade, o que quer dizer a adequação dos registros dentro dos cômputos burocráticos vigentes.
Afinal, a estrutura burocrática em si e por si é o zênite do seu horizonte existencial. Tudo está bem desde que apareça corretamente na estatística, no relatório e na prestação final de contas, onde os números, como bons trajes de banho, mostram tudo, menos o essencial. Ela assim procede porque nunca quer sair do lugar que ocupa, a menos que seja para uma posição de Pequena Autoridade acima – o que quase não ocorre, em razão de comumente prestar seus serviços insossos em lugares periféricos e pouco reconhecidos.
Especialistas afirmam que o tratamento mais indicado para a Síndrome da Pequena Autoridade seria retirar-lhe do cargo e fazer-lhe cavar, revolver, amontoar e remover ervas daninhas e outros materiais de um terreno abandonado com uma ferramenta manual de madeira e ferro especialmente projetada e forjada para tais finalidades – ou seja, aquilo que a sabedoria popular costuma chamar de capinar um lote. Mas infelizmente ela não costuma se submeter de bom grado a tão rigorosa terapêutica.
De resto, a melhor maneira de lidar com a Síndrome da Pequena Autoridade é evitar o confronto, dar de ombros para seus caprichos excessivos e sorrisos blasés às suas insípidas conversações. Desse modo, evita-se quaisquer náuseas, surtos, engulhos, petardos ou estresses desnecessários. Sobretudo, não se deve buscar ter a última palavra em diálogos com a Pequena Autoridade – essa é, pois, sua prerrogativa absoluta e seu objeto supremo de desejo –, para que não se sofra nenhum tipo de sentença aberrante.
Melhor é manter a perplexidade sob controle e canalizar o sentimento de descalabro para as macroestruturas gerais que sustentam e abrangem os empregos em que com ardor se agarra a Síndrome da Pequena Autoridade. Assim, quem sabe, alguma mudança seja possível e factível num futuro oxalá não tão distante.
(*) Demetrio Cherobini, professor da rede municipal de Santa Maria, é licenciado em Educação Especial e bacharel e Ciências Sociais pela UFSM, mestre e doutor em Educação pela UFSM e pós-doutor em Sociologia pela Unicamp.
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