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Xô, passarinho! – por Pylla Kroth

Dizem ser o ódio irmão bastardo do amor, outros que é o gêmeo mal formado do amor, e na verdade por convenção no dicionário temos definido ódio como o perfeito oposto do amor. Esta é uma questão de enorme complexidade que atordoa os sentidos dos homens, que desde os primórdios da idade da racionalidade, também uma palavra de difícil compreensão e definição para nós, tenta-se compreender esse sentimento terrível, assombroso, de um potencial tão avassalador quanto o amor, exceto que voltado para o mal enquanto seu oposto é voltado para o bem.

Diante de tanto ódio explícito nas redes sociais nos últimos dias, lá fui eu pra Bíblia Sagrada buscar uma inspiração para escrever a respeito sem ser partidário de nenhuma causa em especial, mas tentar compreender de alguma forma a essência da existência deste sentimento tão intrigante do qual os humanos parecem ser presas tão fáceis.

Temos no primeiro capítulo de Gênesis que no principio havia o Vazio sobre a terra e que Deus fez a separação entre as trevas e a luz, o que me leva a crer que se levarmos a interpretação para um campo metafísico, poderíamos imaginar que a dualidade se criou neste momento e se fez então eternamente necessária para reger o universo, para que algo existisse além do vazio e do nulo, pois juntando todos os opostos numa só entidade teríamos o nada!

As próprias leis básicas da física nos ensinam que a soma de duas forças opostas com igual intensidade resulta em zero. É, portanto, uma ideia plausível teorizar que o Criador, o grande arquiteto do universo, para concebê-lo precisou separar o imenso vazio nas dualidades que ora conhecemos, desde as físicas tais como luz\trevas, dia\noite, seco\molhado, terra\mar, ar\água, até as mais abstratas e complexas tais como bem\mal e amor\ódio; o que no fim do processo resultaria na criação da humanidade, pois de toda esta dualidade dependemos e\ou somos feitos, tendo dentro de nós a natureza do bem e do mal, a capacidade de amar e de odiar, de sermos escuros como a noite ou claros como o dia, adaptáveis como a água ou duros como a rocha, calmos como a brisa ou furiosos feito a tempestade, entre centenas de outras comparações cabíveis de serem feitas, mas que estourariam todos limites de caracteres de uma simples crônica e renderiam muitos tomos de filosofia e reflexão.

O ódio, parece-me, esse acompanha a humanidade ao longo da sua evolução, pois o ser humano evoluiu a partir de uma capacidade de produzir violência numa escala que era desconhecida pelos animais, uma violência que excedeu a violência selvagem original que era necessária para a sobrevivência das espécies, o matar para se alimentar, o defender o território e o manter-se vivo basicamente. O ser humano, porém, passou a produzir violência por motivos de ódio,  ódio humano, este sentimento que se guia pelo ímpeto, pela gana, pela irracionalidade, pela besta por baixo da pele do homem e da mulher que por ele se deixam eventualmente apoderar.

Certa vez minha mulher estava lendo um livro e quando vi o título na capa acabamos até mesmo discutindo um pouco, pois não gostei e julguei o livro pela capa, me incomodei com o nome: “o espírito do mal”. Era um livro de literatura do conhecido escritor William Peter Blatty, que escreveu o ainda mais conhecido “O exorcista”.

Na época ela não conseguiu me convencer que não era um livro sobre o mal no intuito de idolatrar o mal, pois eu não quis ouvir, e na verdade eu nunca realmente li o tal livro. Aliás, inclusive soube agora que para manter o livro, ela arrancou a capa e contracapa e pôs no lixo, guardando apenas o miolo com o conteúdo, para não me deixar chateado.

Contou-me quando finalmente me dispus ouvir que neste livro tem um personagem que já participara da saga anteriormente citada: o engraçado e esdrúxulo investigador de polícia Tenente Kinderman, um judeu praticante, porém cético e questionador, que enquanto investiga o caso em torno do qual se desenrola toda a trama de assassinatos e terror da qual é feito o livro, desenvolve consigo mesmo na maior parte do tempo sozinho e ás vezes com seu parceiro de trabalho, o sargento Atkins, e também um amigo clérigo, a sua própria teoria sobre a existência do mal neste mundo, e sobre a idéias do Criador, sobre anjos e demônios, sobre a dualidade universal.

A teoria sendo desenvolvida é bem interessante, porém muito longa, apenas lendo o livro para compreender; algo que pretendo fazer. Fato é que o que seguem são “spoilers” que me foram contados por ela. Diz que no final do livro o tenente senta-se numa lancheria barata com seu colega de trabalho, com o qual pouco antes fora ao cinema assistir a sessão dupla de “Gunga Din” e “O Terceiro Homem”, pede duas Pepsis e dois hambúrgueres engraxados para o atendente que é de muita má vontade e grosseiro (na verdade o colega queria café mas era possível que se insistisse levariam uma paulada na cabeça do atendente pelo adiantado da hora e mau humor crescente), e põe-se a falar sobre a sua teoria.

Num momento de grande inspiração, depois de dissertar sobre “Os Irmãos Karamazov”, com olhar cansado e complacente, ele afinal expõe a simplicidade da teoria que passou o livro inteiro formatando e diz afinal ter chegado a uma conclusão: “é isso que Cristo deve ter querido dizer quando falou da necessidade de nos tornarmos criancinhas, antes de podermos entrar no reino dos céus. Não sei. Mas é possível. Não sei como dizer isso. Estou falando da parte absurda, inacreditável. Mas ok, nada mais faz sentido mesmo, nada pode explicar as coisas, Atkins. Absolutamente nada. Estou convencido de que é a verdade. Mas voltemos a Karamazov por um momento. O mais importante é quando Alyosha diz: “sejam bons!”. A menos que façamos isso a evolução não funcionará. Nunca chegaremos lá” (…) Os físicos agora estão convencidos de que todos os processos da natureza foram, outrora, parte de uma força única, unificada. Creio que esta força era uma pessoa que há muito tempo se rompeu em fragmentos, por causa do anseio em moldar seu próprio ser. Isso foi a Queda. A grande explosão, o Big Bang… o começo dos tempos e do universo material, quando Um se tornou muitos… legião. E é por isso que Deus não pode interferir mais: a evolução é uma pessoa crescendo de volta pra si mesma.”

O sargento então cheio de perplexidade pergunta-lhe: “e quem é esta pessoa?”. “Não podes adivinhar” diz o tenente com os olhos brilhantes e risonhos, “venho dando pistas há tempos, já lhe dei a maioria das pistas”. E para a estupefação completa do colega, acrescenta, cheio de serenidade: “somos o Anjo Caído. Somos o Portador da Luz. Atkins… nós somos Lúcifer!”

Quando ele fala isso ficam os dois em silencio sem saber o que dizer, e então chega um mendigo no bar, olha o atendente grosseiro e mal humorado como se suplicasse em silêncio, e ambos pensam pelo olhar carrancudo do homem que irá enxotar o pobre a pauladas – afinal quase fizera isso com eles que estavam ali pagando pela comida. Em vez disso então, o homem levanta, pega uma embalagem de papel, mete dentro dela alguns hambúrgueres que estavam grelhando na chapa a espera de clientes, e entrega ao mendigo que se vai sem dizer palavra. Então ele suspira simplesmente: “Hurra, hurra para Karamazov!”

(Para compreender esta expressão, é aconselhável ler “Os irmãos Karamazov”)

Obviamente, isso é pura fantasia da brilhante mente do escritor, porém existe uma coisa que estou convicto e que vem ao encontro deste pensamento: somos bem, e somos mal, somos amor e somos ódio, somos dualidade e não precisamos ser Lúcifer de fato, o querubim ungido que andava pelas pedras afogueadas, era o mais belo entre os mais belos, perfeito foi criado até o dia em que se encontrou iniqüidade nele e caiu do céu feito um raio, segundo o livro sagrado, por ter preferido se entregar ao orgulho, ao ódio, a vingança que habitava ao lado da obediência, virtude, complacência e amor, por ter sido criado da mesma dualidade de que todo universo, inclusive nós míseros humanos fomos!

Ou pelo menos este é o mito que chegou a nós. Há outros que crêem diferente, que Lúcifer desafiou uma suposta tirania do criador e seus arcanjos e preferiu manter-se no amor pelas crianças humanas, preferindo ser exilado longe da luz divina e nos ensinar outros caminhos,  e segundo a bíblia do satanismo ou do luciferianismo sua doutrina se resumiria nas seguintes palavras: “ não possuo servos, pois meus seguidores não são meus escravos e tão pouco possuo ovelhas para que não sejam dominadas, porém possuo lobos, donos de si mesmos, que são guiados pela minha Luz”, enfatizando a tão sonhada liberdade de tomada de decisões, o livre arbítrio que os anjos não possuem por serem servos do criador e que ele tanto desejou a ponto de ocasionar a perda de suas asas e eventual queda.

Quero observar antes de mais nada que estou apenas expondo diferentes pontos de vista neste texto, não que minha crença esteja ou no cristianismo, ou no luciferianismo, ou no paganismo, ou na ciência, ou no mito desta ou daquela civilização, exclusivamente. Pelo contrário, minhas questões de fé e crença, como já refleti em textos anteriores que podem ser lidos, são extremamente individuais; creio em forças supremas que regem o universo que estão muito além da nossa compreensão, a qual preferimos simplificar chamando de Deus, mas que não temos como saber com certeza quem e o que é, podemos apenas crer, e crendo sermos contemplados com estas forças que temos a liberdade de escolher onde e em que usaremos, para fortalecer o lado positivo da nossa eterna dualidade: bondade, amor, virtude, luz, etc. ou não, pois alguns escolhem alimentar o lado oposto da dualidade.

Quanto ao que eu escolho? Escolho a esperança de que não alimentemos tanto o ódio, que se por acaso em algum momento sentirmos ódio seja lá do que for, que respiremos, que calemos fundo, que encontremos serenidade para apaziguar a besta e deixar que o homem, feito a imagem e semelhança da divindade, se sobressaia. Dizem que podemos deixar um passarinho pousar na nossa cabeça e isto seria algo até mesmo bonito, porém deixá-lo fazer ninho, não é aconselhável! Então, assim sendo… xô, xô, passarinho!

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