Não vai haver pirâmides – por Orlando Fonseca
Há quatro anos, uma galera repetia nas ruas dos grandes centros brasileiros, trajando camisetas verde-amarela, em coro raivoso: “não vai haver Copa”. E houve Copa. Havia por certo mais gente interessada em acompanhar os jogos do que descontente com as suspeitas de obras superfaturadas. Lotaram as arenas novinhas, embevecidas com o espetáculo de cores, sons e imagens, misturando línguas e culturas diversas.
Certamente, esta gente bronzeada não estava preocupada com o legado anunciado pelos cartolas da FIFA, o que justificaria por si só os gastos com a montagem do maior circo futebolístico do mundo. Talvez, àquela altura da história republicana, também não estavam preocupadas com pão. E houve Copa.
Houve vitórias e derrotas acachapantes, mas dentro das quatro linhas, como gosta de delimitar a crônica esportiva. Há quem torça o nariz, até hoje, dizendo que isso é uma baita alienação, e que só estamos no estágio político em que nos encontramos na atualidade, por causa disso. Seria o verdadeiro legado dos jogos mundiais. Tenho minhas dúvidas.
Atividade cultural é alienação? Seguidamente, na época das folias de Momo, ouvimos a mesma lenga-lenga. O recorte pode ser moral, ter origem em formação religiosa ou opção político-ideológica. E aí vêm os questionamentos sobre gastos públicos com o Carnaval, com a entrega do povo aos festejos, por três dias, comprometendo os fundamentos da família brasileira ou as metas do PIB. É importante destacar que a Literatura já foi considerada como tal, até mesmo nos suntuosos salões de Paris: Flaubert foi condenado com a sua adúltera Madame Bovary.
Citei algumas situações coletivas, mas e no terreno das individualidades: o que dizer da paixão? Tudo o que é capaz de fazer uma pessoa neste estado de sem noção, sem bom senso, sem responsabilidade? Nem vou falar em termos de fé religiosa. Ou seja, desde que o ser humano é o que é, a alienação é parte de sua experiência de estar no mundo. Não é privilégio do ignaro povo que convive neste território continental, entre o Oiapoque e o Chuí.
Só assim é que se pode explicar a euforia dos russos – grande parte deles também fez protestos em razão das obras megalômanas – na atual disputa em território do leste europeu. E o que dizer das disputas pelas novas e futuras sedes? Em 2026, na América do Norte, os Estados Unidos vão levar grande parte dos jogos – Canadá e México ficarão com um terço – isso porque ficou de cara com ter perdido a Copa de 2022, acusando os cartolas do Qatar de terem comprado os votos.
De uma pernada só, driblaram grandes confederações como as da Coreia do Sul, Japão, Austrália e os próprios EUA. Para 2030, está no páreo um trio sul-americano: Argentina, Paraguai e Uruguai (dois desses já nas quartas-de-final desta Copa).
Fico imaginando se os egípcios, indignados com as obras faraônicas – sim, foram os dirigentes de lá que as inventaram – se rebelassem ou sabotassem a construção das enormes pirâmides? Como falar em legado cultural que hoje pertence à humanidade, segundo a Unesco? E obras nababescas como o Taj Mahal (sim, nababo era o nome de autoridades na Índia)? E os Jogos Olímpicos da Grécia Antiga – para que serviria aquilo?
A visão capitalista é que supõe o valor das coisas como valor de uso, de utilidade. Por esta é que alguns consideram fatos culturais como alienantes. No entanto, a alienação que a cultura possibilita não é inútil. Os gregos, antes dos romanos, é que criaram a noção panis et circensis, pagando ao povo para ir ao anfiteatro assistir às tragédias, o que lhes possibilitava, segundo Aristóteles, uma catarse.
Não esqueçamos que o teatro é uma derivação profana do culto ao deus Dionísio. Poderíamos dizer que, nos dias atuais, isso poderia significar o sagrado direito ao lazer. Por alguns dias, de quatro em quatro anos, ou nos ensolarados domingos brasileiros, o povo tem o direito a celebrar um culto aos dribles geniais. O resto é mi-mi-mi (só sei disso porque leio bastante, me informo, e presto atenção no que “eles” dizem, mesmo quando estão dizendo nada).
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