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Sacrifício – por Pylla Kroth

Há 30 anos compus o refrão de uma música da saudosa banda Fuga em que alertava para a fome no mundo: “Ei, tu, que vive a vida, tá na hora de acordar e de ver que a fome existe e que temos que enfrentar!” Este refrão emplacou nas rádios  e penso que foi porque nele expus uma situação real pela qual um dia e especificamente naqueles dias difíceis eu estava passando. Fui ensaiar com fome, pois a empresa na qual eu trabalhava não havia nos pago o décimo-terceiro salário e eu gastei o que não deveria ter gasto naquele final de ano (mas tinha direito).

Hoje, aposentado, juro que não gostaria de ver trabalhador algum passando fome, mas do jeito que a coisa anda …

Naquela época, a ideia expressa num refrão foi uma forma de protesto de minha parte e vi que não se tratava apenas de mim. O povo gritou, cantou, e grita e canta até hoje.

Continuo cantando, mesmo aposentado, mas dias atrás fui convidado a participar de um evento realizado pelo Diário de Santa Maria, uma competição de chefes de cozinha amadores e aceitei.

A primeira coisa que me veio à mente foi a possibilidade de criar um prato que todas as classes sociais pudessem fazer, mas principalmente os pobres. Lembrei-me então de um prato que minha mãe fazia quando na luta pela nossa criação, minha e de minha família, se virava para dar nosso sustento.

E não é que deu certo? Muitos de vocês devem ter acompanhado pelas mídias virtuais e pelo próprio jornal. Fiquei emocionado em ver tamanha aceitação do prato. “Arroz de sacrifício”, feito de uma das partes do boi consideradas “inferiores” que eram e ainda são desprezadas. Consiste de pequenas porções de carnes, cartilagens e gorduras situadas ao redor dos ossos sacro e ilíaco, que ficam no final da espinha dorsal do animal. Até atualmente os açougues descartam esta parte, que não é aproveitada nem mesmo como “carne de segunda”, e por  esta razão é chamada de “sacrifício”, pois é jogado fora.

Infelizmente vivemos numa cultura de desperdício em que muitos alimentos são jogados no lixo. Isso mesmo, no lixo! Ao mesmo tempo em que milhares de pessoas passam fome, vivendo abaixo da linha da pobreza, o que é uma herança do passado histórico semi-feudal de nosso estado, o qual num certo sentido em alguns lugares ainda está longe de ser abolido, manifestando-se sobre tudo na enorme diferença de classes. Neste contexto, este prato tem uma conotação interessante, que permite refletir sobre essas desigualdades e conscientizar sobre o aproveitamento máximo do alimento que seria desperdiçado, o qual não apenas é possível como também pode se transformar em uma parte considerada inferior em um prato tão saboroso quanto qualquer outro feito com partes nobres da carne.

Após a divulgação e relato da minha participação, muitas pessoas, pobres e ricos me interpelavam na rua pedindo a receita, que naturalmente fiz questão de imprimir várias cópias e tê-las comigo para distribuir.

Ainda ontem fui ao açougueiro, que me conseguiu duas peças de sacrifício e teve o cuidado de cortá-la como solicitei e ele se aproximou de mim e me cumprimentou pela iniciativa, pois aquela peça das carneias dele sempre sentia desgosto por ter que jogar fora, pois nunca havia procura, vejam bem, e contou-me que somente nesta semana por minha indicação apareceram por lá duzias de pessoas querendo a peça, que também é chamada de “Cadeirinha”. Porém, seu espanto maior foi a de grandes figurões da cidade que envergonhados em ir pedir, mandaram seus empregados comprar, certamente por terem vergonha de ir pedir uma peça de sacrifício.

E eu, como disse aos jurados na apresentação de meu prato, parafraseando a música do artista Gaúcho da Fronteira, que foi regravada também pelos roqueiros do Engenheiros do Hawaii, “(…) Herdei um campo onde o patrão é rei, tendo poderes sobre o pão e as águas, onde esquecido vive o peão sem leis, de pés descalços cabresteando mágoas”

Só que não… o meu amigo açougueiro, que nunca vendeu e nem vende esta peça, fez questão de doá-la somente a pessoas pobres!

Encerrando minha escrita de hoje, desejo que mais locais de venda de carne por este pampa rico, mas ainda pobre, ao verem passar pelas suas portas nossos peões menos afortunados pedindo “um sacrifício, por favor”, tenham a gentileza de servi-los, pois a satisfação que vem da solidariedade, de um ato de boa vontade. E caridade é como o sacrifício, não tem preço!

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução da internet.

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