Os descartáveis
Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)
Em 1996, em meio aos entusiasmos de muitos intelectuais com a globalização, a ensaísta e romancista francesa Viviane Forrester escreveu “O horror econômico”. Aquela pequena obra chamava a atenção para a incapacidade da economia neoliberal em gerar empregos e de como esse fenômeno estava se tornando uma verdadeira perversidade social.
Na contramão dos entusiastas, a autora destacava que em uma economia de mercado o útil “significa quase sempre ‘rentável’, isto é lucrativo ao lucro”, o que em termos de trabalho significa empregável. Portanto, o problema da não geração de empregos estava gestando um mundo de sujeitos não rentáveis, ou seja, inúteis e descartáveis.
Forrester alertava também para o fato de que a preocupação dos governos e das elites econômicas com esse fato não ia além de discursos que eram contraditados por práticas econômicas voltadas apenas ao mercado financeiro.
Quase duas décadas e meia depois, o descarte sem pudor dos não rentáveis é uma dura realidade. Nem mesmo uma educação de nível superior ou uma pós-graduação garantem emprego. Entregues à própria sorte, muitos trabalhadores tentam sobreviver como podem nas condições mais precárias de trabalho visando escapar da situação de não rentável. Para muitos, trabalhar como entregador a partir de aplicativos se tornou a única possibilidade. Com isso multiplicam-se pelas cidades os ciclistas e suas caixas térmicas compradas junto as fornecedoras do próprio aplicativo.
Um trabalhador de aplicativo, seja com sua própria bicicleta ou com uma alugada, chega a pedalar em média 30 km e trabalhar 12 horas por dia. Alguns ficam tão exaustos que não têm nem força de voltar para suas casas. Acabam dormindo na rua, conforme relataram os próprios entregadores em uma recente reportagem da BBC News.
Entre entregadores de bicicleta, moto e motoristas, cerca de 4 milhões de brasileiros trabalham em aplicativos, sem qualquer garantia de renda mínima ou direito trabalhista. Esses engrossam os 38 milhões de trabalhadores informais. Aqueles que os ideólogos da precarização insistem em chamar de Empreendedores, mas que na verdade realizam cotidianamente uma verdadeira Gestão de Sobrevivência.
Entre os empregados formais, a luta para não se tornar um não rentável tem sido muito dura. A pressão para não fazer parte dos descartáveis tem levado a crescentes índices de adoecimento no trabalho. Desde 2015, quando o Brasil passou a adotar políticas de austeridade geradoras de altos índices de desemprego, os diagnósticos de estresse, depressão e ansiedade entre os trabalhadores não pararam de crescer.
Em um estudo realizado pela consultoria 4CO, em parceria com o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, divulgada em novembro de 2019, 78% dos entrevistados afirmaram que o trabalho contribui ou já contribuiu com seu adoecimento.
O professor Ruy Braga, coordenador do Cenedic, afirma que “há um sentimento de perda de proteção social, de aumento da insegurança e espoliação dos direitos” e “uma percepção de que o trabalho bloqueia o potencial das pessoas”.
Nessa mesma linha, em março de 2019, o professor da Escola de Pós-Graduação em Negócios da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, Jeffrey Pfeffer, em entrevista à BBC News, declarou que o “trabalho está matando as pessoas e ninguém se importa”.
Com sindicatos esvaziados e reformas que eximem as empresas e a justiça de qualquer responsabilidade os empregados, os trabalhadores formais, assim como os informais, são entregues à lógica do salve-se quem puder, onde nem mesmo a morte no ambiente de trabalho choca.
Essa foi a realidade assistida no dia 14 de agosto de 2020. Moises Santos, 53 anos, representante de vendas de uma empresa de alimentos, trabalhava em uma unidade de uma rede multinacional de Supermercados, localizada no Bairro da Torre em Recife – PE, quando sofreu um infarto e não resistiu.
Seu corpo permaneceu do horário do óbito das 7h30 até às 11h30, estendido no chão da loja, coberto por guarda-sóis e cercado por caixas de papelão e engradados de cervejas, aguardando o Instituto Médico Legal. A unidade seguiu funcionando normalmente. Não podia se “dar ao luxo” de fechar por algumas horas, afinal “tempo é dinheiro”.
A notícia da morte do trabalhador Moises Santos me fez recordar “O Horror Econômico”. Relendo suas páginas percebo que Viviane Forrester foi certeira em suas colocações. Na era do descarte sem pudor dos não rentáveis, os rentáveis, por mais que assumam o interesse das empresas como seu, só valem quando tem saúde e vida.
Sem saúde e sem vida, eles são apenas um inconveniente atrapalhando os negócios, enquanto esperam o descarte, afinal onde não se tem pudor pela vida, também não se tem pudor pela morte.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
Observação do editor: a imagem aqui publicada é uma reprodução obtida na internet, da capa do livro citado no artigo.
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