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A herança bendita da estabilização – por José Maria Pereira

O articulista e uma análise da conjuntura, escorada na história a partir do Real

Nunca antes na história do país um programa foi tão bem sucedido quanto o Plano Real. Seus resultados são ainda mais expressivos se for levado em conta o ceticismo da população após o fracasso dos programas de estabilização anteriores e pelo cenário, à época do seu lançamento, de quase hiperinflação.

Em primeiro lugar, pelo fato de o Brasil ter preservado a sua moeda, enquanto em alguns outros países latino-americanos houve substituição da moeda local pelo dólar. A moeda local circulava, mas como os preços eram cotados em moeda estrangeira, as pessoas procuravam livrar-se da moeda nacional e adquirir dólar como reserva de valor (caso argentino, por exemplo). O caso do Brasil se explica devido à existência de ativos indexados (corrigidos pela inflação), de alta liquidez, que funcionavam como “quase-moeda”.

Em segundo lugar, o Plano equiparava a moeda criada (Real) ao dólar e preservava a sua função de “reserva de valor”.  Isso trouxe um efeito redistributivo imediato, na medida que equiparava as classes de baixa renda, que não usufruíam de moedas indexadas e protegidas da inflação, às classes de alta renda que tinham acesso a essa proteção.

Como consequência, trouxe não só o acesso dos pobres ao mercado consumidor como a redução da pobreza absoluta.  Em terceiro lugar, a estabilização trouxe de volta a capacidade de planejamento das empresas e, com ela, o estímulo à ampliação da capacidade produtiva (investimento), ao invés dos ganhos especulativos fáceis dos tempos de alta inflação.

Em resumo, somando o conjunto de benefícios trazidos pela introdução da nova moeda em 1994, pode-se concluir que a sua preservação passou a ser um objetivo de interesse não só de um governo, mas de toda a sociedade. Desde o governo FHC, ninguém se arriscou a perder o capital político da estabilização. Nem Lula pareceu disposto a correr o risco da volta da inflação. Se Lula tinha em mente uma política econômica diferente daquela de seu antecessor, não a colocou na prática durante o seu primeiro mandato.

Preocupado em não perder a confiança do mercado foi buscar nos quadros do próprio PSDB o presidente do Banco Central (Henrique Meireles) que o acompanharia ao longo dos seus dois mandatos. Certamente, não era essa a “herança maldita” que Lula herdou do seu antecessor.

Se você não é economista, é bom saber que inflação é um processo de alta generalizada dos preços. Até agora, na verdade desde 1994, nós vivemos uma situação de estabilidade de preços: alguns produtos aumentam de preço, por desajuste entre oferta e demanda, enquanto outros caem de preço, compensando, no índice geral, os preços que aumentaram. Mas isso mudou com Bolsonaro.

Vangloriando-se de nada entender de economia, Bolsonaro mandou “às favas” o compromisso com a estabilidade dos governos anteriores. Desde que tomou posse, governa única e exclusivamente no interesse de si próprio ou de sua família.

Administra um orçamento paralelo para comprar o voto dos parlamentares, gasta o que não tem com medidas eleitoreiras que não cabem no teto de gastos (dando “calote” nos precatórios) e perturba o mercado com declarações que revelam a sua ignorância em relação à economia (ou qualquer outro assunto). Tudo somado, faz o dólar – termômetro da credibilidade do governo – disparar para patamar nunca antes alcançado.

Como resultado, a um ano das eleições, a inflação dos 12 meses já alcança a casa dos dois dígitos. Tal como aconteceu no cenário pré-Plano Real, na ausência de choques inflacionários, a inflação se move por inércia, isto é, os agentes econômicos têm uma “memória” da inflação passada que projetam para o futuro.

Sem saber como serão os preços futuros quando forem repor os estoques, as empresas simplesmente transferem os aumentos de preços passados para o futuro e a inflação se acelera. O que o Plano Real fez foi “quebrar” as expectativas inflacionárias, a chamada “indexação” de preços e contratos.  O leitor interessado encontra uma descrição da teoria da “inflação inercial” no meu livro Manual de Economia Brasileira (Editora UFSM).

O que impressiona atualmente, por um lado, é a rapidez da alta dos preços e a sua magnitude. Em poucos meses, a inflação anual rompeu o patamar dos dois dígitos e produtos e serviços essenciais – óleo de soja, carne, arroz, gás de cozinha, energia elétrica, gasolina, etc. – têm registrado aumentos absurdos.

Como consequência, observa-se um efeito redistributivo invertido, já que corresponde a uma transferência de renda dos pobres para os ricos através da inflação.  O que mais preocupa, por outro lado, é a sensação de que o governo é um simples espectador. Bolsonaro só pensa na reeleição. A manutenção da estabilidade pressupõe credibilidade do governo. E isso, convenhamos, é tudo que Bolsonaro não tem.

(*) José Maria Pereira é Doutor em Economia, professor aposentado do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM. O artigo acima foi publicado originalmente no site da Seção Sindical dos Docentes da UFSM (AQUI) e reproduzido com a autorização do autor.

Nota do Editor: a imagem que ilustra este artigo é uma reprodução obtida no site Brasil Escola, alojado no portal Universo Online (AQUI)

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Um Comentário

  1. Pois é professor, o plano real trouxe estabilidade nos preços por décadas. Mas uma escolha errada fez retornar a inflação(com uma ajudinha da pandemia) e todas os males que ela causa. Nada nesse governo é bom ou funciona. Estamos pagando um preço alto e a tendência é piorar.

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