Da BBC Nesws Brasil, em São Paulo / Reportagem assinada por Ian Alves
No começo, eram 5 reais.
Esse era o valor das primeiras apostas de Adriano Monteiro, técnico de eletrônica de 31 anos de Piracicaba, São Paulo, em casas de apostas esportivas.
Ele ouviu falar por amigos, ainda em 2017, sobre a possibilidade de lucro nessas plataformas, nas quais os usuários podem apostar dinheiro em diferentes estatísticas de jogos de futebol e outros esportes.
Começava a se estabelecer no Brasil a febre das bets, hoje em dia presentes em todas as partes do universo do futebol e responsáveis por uma nova onda de vício em jogos entre os brasileiros, segundo apontam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Adriano faz parte desses novos casos. Seis anos depois de sua primeira aposta, a soma de suas perdas ultrapassam os R$ 170 mil. Também chegou a perder seu emprego, vendeu casa, carro, se afastou de amigos e, segundo ele conta, enfrentou momentos difíceis de depressão.
Em um desses momentos, veio a ideia de criar seu canal no YouTube, “Apostador Falido”, em que relata a sua história com as apostas e outras dezenas de histórias de seguidores que recebe toda semana.
Construção do hábito
Por quase 2 anos, as apostas de Adriano não passavam dos 10 reais. “Eu perdia cerca de 50 reais por mês, via como uma brincadeira. Não fazia falta no meu orçamento. Na época, não tinha noção do nível que ia chegar.”
Mesmo com valores relativamente baixos, apostar e acompanhar os jogos de futebol foi se tornando um hábito cada vez mais presente em sua rotina.
“Eu passava o dia inteiro fazendo isso. Era a rotina de trabalho chegar em casa e ficar no celular. Constantemente você vê que se isola e fica só apostando – o mundo gira em torno disso.”
Mas ter que esperar os jogos acontecerem para só então ter o retorno das apostas passou a ser um tempo longo demais. Uma alternativa mais rápida eram os cassinos online, que ficam hospedados dentro das plataformas das bets.
“O cassino ao vivo é muito rápido – em algumas modalidades, cada rodada dura 15 segundos. Como você ganha e perde valores maiores e mais rapidamente, você reflete menos sobre o que está fazendo, e acaba aumentando o dinheiro investido”, conta Adriano.
A evolução do vício
Conforme o valor das apostas aumentavam, o salário do mês foi sendo usado quase inteiramente com esse fim. Ele relata que apostou 10 mil reais que tinha à disposição e perdeu tudo em uma semana.
Nessa mesma época, vendeu por 100 mil reais a casa que demorou “praticamente dez anos para juntar dinheiro e conseguir comprar”, ficando com mais dinheiro disponível para jogar.
Ele conta que já não encarava as apostas como entretenimento, e sim como uma potencial fonte de renda.
“Não gostava do meu emprego e assistia a vídeos de influenciadores dizendo que, com ‘gestão de banca e controle emocional’, as apostas podem ser uma boa renda extra – e eu acreditava nisso.”
Para o psiquiatra Hermano Tavares, a influência de figuras famosas no cenário brasileiro contribuem para casos como o de Adriano.
“É um absurdo que influenciadores do peso de Felipe Neto ou Neymar falem publicamente das apostas como um complemento de renda. Isso deveria ser proibido com letras maiúsculas, porque isso é uma mensagem falsa. É uma fraude.”
“Mesmo que você tenha um controle emocional absoluto, a probabilidade estatística dessas casas de aposta é que, ao longo do tempo, você ainda vá perder dinheiro”, completa.
Procuradas pela reportagem, tanto a equipe de Felipe Neto quanto a de Neymar disseram que não vão se pronunciar sobre o assunto e sobre a fala do psiquiatra.
Vale ressaltar, também, a atuação dos próprios times de futebol na disseminação do hábito de aposta entre os torcedores.
Na principal competição de futebol do Brasil, a Série A do Campeonato Brasileiro, 18 dos 20 times são patrocinados por casas de aposta. Em 12 deles, elas são o patrocinador master, aquele que investe a maior cota.
Sobram o Cuiabá e o Palmeiras — este último, patrocinado por uma bet em seu time feminino.
A Betano, uma das empresas mais relevantes do setor no Brasil, adquiriu ainda os naming rights dos outros dois maiores campeonatos, agora oficialmente chamados de Copa Betano do Brasil (antiga Copa do Brasil) e Série B Betano do Campeonato Brasileiro.
Ilusão de controle
Adriano começou a pagar para participar de “grupos VIP” gerenciados por influenciadores conhecidos como “tipsters”, especializados em dicas de aposta.
Comprou cursos. Estudou gestão de banca, as populares estratégias vendidas por influenciadores como o segredo para um faturamento certeiro. Mesmo assim, terminava todo mês com prejuízos.
Nesse momento, que Adriano descreve com um dos auges de seu vício, as apostas já chegavam aos mil, 5 mil, 10 mil reais, e via o valor que tinha ganhado com a venda da casa ir diminuindo mês a mês.
Apesar das perdas, decidiu que, com boa estratégia, essa poderia se tornar sua principal fonte de renda. Largou o emprego e passou a colocar valores cada vez mais altos em jogo.
“O indivíduo afetado pelas apostas tem o que a gente chama de ilusão de controle: ele acha que características e atributos pessoais, como experiência, inteligência, intuição etc., são capazes de promover uma habilidade superior na previsão ou no controle do resultado”, explica Tavares.
Cerca de um ano após a venda de sua casa, os 100 mil reais iniciais tinham chegado a 45 mil. Esse foi o momento em que Adriano foi buscar ajuda.
Começou a fazer sessões com psicólogo e entrou em fóruns sobre vício em jogos dos Estados Unidos e Inglaterra – países que, em sua opinião atual, já estão mais bem preparados para lidar com esse assunto.
“Aqui no Brasil, como é uma tendência muito recente, eu não sabia lidar com essa situação, minha família não sabia.”
Com ajuda do psicólogo, entendeu que as apostas tinham lhe causado ansiedade, estresse e perda financeira. Pediu que seu pai guardasse o dinheiro restante e ficou decidido a não apostar nunca mais.
Ele chegou a ficar três meses longe das apostas e se sentia bem consigo mesmo: “Foi o melhor período da minha vida”.
“Meu pai ganhou confiança em mim, me devolveu o dinheiro que tinha sobrado da casa, e consegui retomar o emprego antigo.”
Mas, por dentro, restava uma sensação ruim sobre suas perdas: “Quando uma pessoa entra nesse mundo, ela fica sempre remoendo o passado. Toda vez que tiver dinheiro na frente dela, ela vai pensar: ‘Eu perdi tempo, perdi dinheiro, e preciso recuperar isso'”.
O retorno ao emprego antigo — e às apostas
O técnico de eletrônica havia saído da empresa dizendo que ia mudar de vida com as apostas. Quando retomou seu emprego, o julgamento dos antigos colegas era constante.
“As pessoas ficavam no meu pé, dizendo que eu tinha acabado com minha vida, e lembrando de tudo que eu tinha perdido. Foi aí que eu comecei a me envolver de novo com as apostas.”
Sentia que precisava recuperar seus prejuízos e mostrar aos outros que não tinha perdido dinheiro à toa, conta.
O jogador compulsivo, explica o psiquiatra do IPq, não considera que gastou dinheiro para sua diversão.
“Ele entende que fez um investimento, mas foi lesado e precisa resgatar não só o dinheiro, mas a autoimagem que ele tem como um ser competente.”
Adriano voltou ao cassino online e começou a fazer apostas muito mais altas do que antes: o valor de R$ 45 mil reais que tinha sobrado da venda da casa em poucos dias flutuou para R$ 60 mil, R$ 80 mil, e depois desceu para os R$ 10 mil.
“Eu já estava fora do controle. Quando fiquei completamente zerado, comecei a fazer empréstimos em bancos. Cheguei a dever R$ 22 mil, depois ficar com R$ 170 mil positivos no mês seguinte e, em três dias, fiquei zerado novamente.”
Vendeu seu carro. Pagava as dívidas do banco, e depois voltava a pegar empréstimos. Ele conta que só não procurou dinheiro com agiotas por temer pela segurança de sua família.
“Em certo ponto, entrei numa depressão tão profunda que não conseguia sair da cama nem comer direito. Eu estava destruído. O julgamento dos amigos não parava: me chamavam de viciado, diziam que eu parecia um drogado, que não tinha mais futuro.”
“Foi o pior momento da depressão. Eu pensava em todo tipo de coisa. Falava: ‘Acabou. Vou sair de casa, ficar sem rumo, realmente não tenho mais futuro'”, conta.
“Mas uma energia ‘lá de cima’ me disse: ‘Adriano, não se entrega, mostra para o mundo que isso aí vai destruir várias pessoas’. E foi aí, quando eu tava no fundo do poço, que tive a ideia de abrir o canal no YouTube’.”
‘Apostador Falido’
Os comentários nos vídeos do canal de Adriano chamam atenção. Centenas de pessoas deixam relatos contando o quanto perderam em casas de apostas, como o vício mudou suas vidas e o que têm feito para lidar com isso agora.
Muitos dizem ter vergonha de falar sobre a relação com as bets, e agradecem Adriano por expor abertamente sua trajetória.
O técnico de eletrônica diz já ter recebido várias ofertas de casas de apostas para que ele faça propaganda delas em seu canal.
“Já perdi as contas de quantas casas de apostas me fizeram propostas de divulgação. Mas não tenho a mínima vontade de influenciar alguém a entrar nisso, porque eu sei que é muito destruidor”.
O papel da família
Tavares indica que familiares e amigos que queiram ajudar não devem julgar nem ficar fazendo súplicas, mas entender como apoiar essa pessoa – por exemplo, não financiando o jogo indiretamente por meio do pagamento de dívidas, nem reproduzindo discursos moralistas.
“Se seu parente tiver uma asma grave, você não fica dando bronca nele e reclamando por estar tendo uma crise de asma de novo, dizendo que ele não tem vergonha na cara e não se trata.”
Ele recomenda a busca pelos Jogadores Anônimos, iniciativa que reúne uma série de recursos para o apostador enfrentando o vício em jogos – de reuniões em grupo presenciais e online a listas de perguntas que ajudam a entender quando há indício de compulsividade.
“A associação dessa nova modalidade de jogos de azar com o futebol, algo em que tantos brasileiros sentem que têm uma opinião para dar, aumenta o apelo das apostas e amplia a vulnerabilidade de quem já é, de alguma forma, suscetível ao descontrole com apostas”, aponta o médico.
“Isso vai levar o futebol, ícone da identidade nacional, para a introdução a outras formas de apostas, inclusive as já não têm mais relação com nossa cultura – como os cassinos online, por exemplo.”
Regulamentação e vício
A discussão sobre a regulamentação das casas de aposta vem crescendo no Brasil, especialmente depois que o Ministério da Fazenda enviou, em julho, uma Medida Provisória (MP) e um Projeto de Lei sobre o assunto ao Congresso Nacional.
Conforme mostrou a BBC News Brasil, as novas regras, se aprovadas, abrem espaço para a cobrança de impostos do setor e uma maior fiscalização das empresas – mas também trazem parâmetros para a propaganda das casas e ações relacionadas ao vício em jogo.
A proposta da Fazenda diz que “as empresas de apostas deverão promover ações informativas e preventivas de conscientização de apostadores e de prevenção ao transtorno do jogo patológico”.
Os detalhes de como isso deve ser feito, porém, ainda não foram especificados pela pasta, que também trabalha em parceria ao Ministério da Saúde em maneiras de ampliar o suporte a jogadores compulsivos no serviço público de saúde.
Questionado pela reportagem, o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), entidade que representa empresas como a bet365, Rei do Pitaco e Betway Group, disse que “acredita na importância de pesquisas e programas de tratamento que tenham como objetivo proteger os jogadores de comportamentos de risco”.
“Enquanto não há regulamentação do setor no Brasil, apoiamos iniciativas de autorregulação do setor publicitário e, em nosso site, criamos um breve manual de boas práticas para os apostadores”, acrescentou o Instituto.
Já a Betano disse que oferece uma série de recursos a seus usuários, como a opção de impor limites de perda financeira e de tempo de uso da plataforma. “O jogador também pode optar por restringir o acesso à sua conta e/ou excluir-se temporariamente ou permanentemente das apostas no nosso site, se assim o decidir”, disse a empresa.
Todas as instituições defenderam que as apostas não devem ser uma fonte de renda principal ou alternativa, e que devem ser tratadas apenas como forma de entretenimento…”
PARA LER A ÍNTEGRA, CLIQUE AQUI.
Cascata. Catação de milho. Governo quer ‘regulamentar’ para arrecadar uma beirada. Não que não deva fazer isto. Problema é que existem inumeras pessoas que apostam, divertem-se e não tem problema nenhum. Ninguém colocou uma arma na cabeça do sujeito e obrigou ele apostar. Busilis é que usam as exceções para ‘tutelar’ a maioria. O Estado não tem como impedir que todos nunca tenham perrengues/façam c@g@d@s o tempo todo em todo lugar. Simples assim. Obviamente existe a ‘vitima’ e os ‘malvados’, sempre a mesma narrativa. Patético.