O crédito e o (super)endividamento: consumidos e consumidor – por Vitor Hugo do Amaral Ferreira
A divisão da história econômica da humanidade contempla três grandes momentos: a era da troca imediata, a era da moeda e, na contemporaneidade, a era do crédito. Neste contexto, duas importantes pesquisas merecem espaço na redação deste artigo. A primeira realizada em São Paulo-SP, foi perguntado qual a lei que mais trouxe benefício ao entrevistado; as respostas apontaram a Lei do Seguro Desemprego e o Código de Defesa do Consumidor entre as mais benéficas aos cidadãos. A segunda pesquisa que pretendo comentar, divulgada pelo Banco Central, apresenta dados referentes à concessão de crédito.
Uma acelerada mudança de comportamento tem alterado o perfil do consumidor brasileiro. Compra-se automóveis em 80 parcelas, passagens aéreas em 48 prestações, imóveis em até 30 anos. Uma vantagem contraditória e cercada de armadilhas. Mais do que uma oportunidade, um desafio.
No ano de 2010, o Banco Central registrou fato histórico na economia brasileira, o valor em crédito concedido à pessoa física superou o empréstimo às pessoas jurídicas. Boa parte dos valores, destinados em empréstimos de ordem pessoal, no montante de 183 bilhões de reais. Na sequência, 108 bilhões referentes a financiamentos de veículos, 107 bilhões para imóveis e 28 bilhões de reais em cartão de crédito. Este, seguimento de crescimento catastrófico, somente entre janeiro e junho de 2010 foram 7 milhões de novos cartões de crédito que passaram a circular no país. Creio que seja também a razão para que 17,5% da renda dos brasileiros esteja comprometida em dívidas.
O alarde de que o Brasil em breve terá o quinto maior mercado consumidor do mundo e que 5 trilhões de reais serão gastos a cada ano, encaminha-nos aos seguintes questionamentos: o que há por trás dos ciclos de consumo?; como o crédito está antecipando as decisões de compra? A resposta está em outra pergunta: a que preço se financia o consumo?
Pois bem, fenômeno das sociedades de consumo atuais, acesso ao crédito fácil e democratizado, o endividamento crônico dos consumidores recebe muitas denominações. Sobreendividamento em Portugal, relacionado ao extra (sobre) do endividamento que é possível suportar com o orçamento mensal; superendividamento no Brasil, na ideia do endividamento super(ior) ao normal, fruto da influência dos estudos surendettement (França) e überschuldung (Alemanha).
Em que pese, oportuno o conceito transcrito pela Profa. Claudia Lima Marques, em que superendividamento é mais do que estar endividado, é o fenômeno global do devedor-pessoa-física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro dedica norma específica (art. 52 e 53) ao dever de informação das condições da operação de crédito e a vedação do pacto comissório. Na legislação estrangeira não é diferente, todas fazem alguma referência ao consumo de crédito. Verifica-se que o dever de informação ocupa um lugar de destaque, para que o consumidor possa manifestar sua vontade de consumir por meio de um consentimento informado. Porém, quando se tratar de financiamento e crédito o consumidor merece cuidados e informações especiais, no intuito de evitar o superendividamento. Aqui uma importante menção ao projeto que tramita no Congresso Nacional, informar é diferente de aconselhar.
Desta forma, salutar destacar que a doutrina brasileira não costuma diferenciar o dever de informação do dever de aconselhamento, ao contrário da prática francesa em que se trata separada e distintamente estas obrigações. A proteção jurídica nos países próximos, tais como Chile, Paraguai e Peru tem priorizado a imposição de estritos deveres informativos ao fornecedor sobre aspectos essenciais da relação de crédito.
Retomando os aportes iniciais deste texto, em que comentei sobre pesquisa que apontou o Código de Defesa do Consumidor como a segunda lei que mais benefícios trouxe aos cidadãos, é pertinente alertar que 20 anos de vigência já se passaram, inúmeras foram as conquistas, diversas ainda são as nossas lutas. A exemplo, precisamos aprimorar o estudo em direito do consumidor por meio da academia, reforça-lo institucionalmente, fortalece-lo em âmbito legislativo, (re)conhece-lo no judiciário e ampliar a discussão em novos contextos (consumidor-idoso, consumidor portador de necessidades especiais, consumidor virtual, consumidor (super)endividado).
O crédito aos consumidores vulgarizou-se. A ilusão do poder aquisitivo, posto pelo crédito, reflete no aumento do endividamento do consumidor, que ao contrário do bem, passa a adquirir dívidas, consubstanciadas ao apelo publicitário de felicidade ao alimentar o ideal de necessidade, transpondo-se ao consumo, agarrando-se ao consumismo.
Referências:
MARQUES, Claudia Lima. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
LIMA, Clarissa Costa de. Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiências no Poder Judiciário. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010.
O brasileiro está ficando cada vez mais superendividado – até nós, estagiários, ocupamos 2% dessa ‘massa’ endividada. Com o aumento do consumo, aumenta-se a demanda, e juntamente, os problemas. A disponibilização de crédito está muito fácil, contudo, o fornecedor de crédito tem o dever, não só de informar, mas sim do aconselhamento na hora da concessão do crédito (o oposto do que está sendo praticado).
Mas em contra partida, há o Projeto do Superendividamento, que visa renegociar as dívidas do consumidor com todos os seus credores, de forma amigável e de acordo com o orçamento familiar por meio da conciliação.
Fico orgulhosa de participar desse Projeto e contribuir para que mais e mais consumidores saiam das audiências não só com o acordo da renegociação em mãos e sim com a consciência de prevenção para não se tornar novamente um superendividado.
Realidade cotidiana, porém pouco discutida esta do crédito fácil e do superendividamento.
Dados surpreendentes.
Ótimo texto.