Artigos

A política externa dos Estados Unidos – Parte 1 – por José Renato Ferraz da Silveira

‘Século XVIII francês; o XIX, britânico; o XX foi acima de tudo norte-americano’

“A América no topo: império ou líder?”

Henry Kissinger

Não são poucos os autores – Paul Kennedy, Henry Kissinger, Joseph Nye Jr, entre outros – que comentam que, da mesma forma como o século XVIII foi francês e o XIX, britânico, o século XX foi acima de tudo norte-americano – assim como é possível que o XXI também o seja.

“No detalhar do novo milênio, os Estados Unidos desfrutam de uma superioridade inigualável, mesmo quando comparados com os maiores do império passado. Do armamento à atividade empresarial, da ciência à tecnologia, do ensino superior à cultura popular, a América exerce um ascendente ímpar em todo mundo” (KISSINGER, 2003, p. 13).

Em todo caso, o fim do século XX, o chamado “pós-Guerra Fria”, caracterizou-se, sem dúvida alguma, pela centralidade norte-americana.

O período de transições e incertezas foi contrabalançado por inúmeras continuidades e certezas, de modo geral relativas à nação ianque: de um lado, pela existência de instituições inter e supragovernamentais em larga medida inspiradas e patrocinadas pelos Estados Unidos, e, de outro lado, por ter exatamente os Estados Unidos como a única superpotência mundial.

Tivemos o período inicial de hesitações externas e introversão do governo Clinton (1993-2000) e a beligerância neoconservadora e para-evangélica de George W. Bush (2001-2009). Após esses governos, tivemos as administrações de Obama (2009-2017), Trump (2017-2021) e Biden (2021-2025). Quem vencerá as eleições americanas?

De acordo com Gisele Agnelli: “as eleições americanas estão marcadas para o dia 5 de novembro, em votação presencial, mas muitos eleitores já votaram de forma antecipada, conforme prevê legislação eleitoral americana, em suas variações estaduais. Segundo a última pesquisa do NY Times/Siena College*, os resultados são imprevisíveis:  Kamala Harris e Donald Trump têm, ambos, 48% de intenção de voto, empate técnico no voto popular, nacionalmente. O empate se repete nos estados-chave, fundamentais para a obtenção da maioria de delegados no colégio eleitoral americano, de forma que, pelo menos com base nas pesquisas, é tecnicamente impossível prever quem será o vencedor”.

Como será a futura política externa do (a) vencedor (a)? Antes de projetarmos possíveis cenários em relação a essa futura gestão, o presente artigo e os próximos farão – ao longo do mês de novembro – um histórico da política externa norte-americana (estadunidense) ao longo da História.

Política externa norte americana: manutenção e propagação do experimento republicano e democrático

O que notamos ao longo da história da Política Externa Norte-Americana é a manutenção e propagação do experimento republicano e democrático. Além disso, a manutenção de um ambiente internacional estável como condição para o desenvolvimento doméstico.

Os dois elementos mais notados na conduta dos Estados Unidos – no século XIX e XX – são o isolacionismo e o unilateralismo. Formulados de maneira exemplar por George Washington em sua “Carta de despedida” da presidência dos Estados Unidos, no final do século XVIII, o estadista preconizava que o país deveria buscar sempre sua autonomia, isto é, sua capacidade de decisão isenta de constrangimentos externos, causados por potências estrangeiras.

Nesse sentido, as eventuais alianças militares deveriam ser mantidas apenas pelo tempo necessário para a consecução de seus objetivos, e o relacionamento com outros países deveriam limitar-se às questões econômicas, distanciando-se das políticas. Ora, o isolacionismo e o unilateralismo andam juntos, pois um é condição do outro: manter-se longe de alguns círculos era a garantia da margem de manobra desejada.

Isolacionismo não significa um afastamento completo das relações internacionais: “na história norte-americana, o isolacionismo nunca significou uma retirada dos assuntos mundiais, mas a manutenção da máxima quantidade de margem de manobra [sic] que, por vezes, faz uso de posturas unilaterais e intervencionistas” (PECEQUILO, 2003, p. 50).

Além disso, deve-se levar em conta que muito do que se entende pela expressão “relações internacionais” significava “política europeia”, ou seja, os norte-americanos procuravam manter-se afastados da política do Velho Mundo, vista como perversa, má, intrinsecamente corrupta e corruptora, reservando ao Novo Mundo a possibilidade de uma nova política e de um novo ser humano.

Evidentemente essa forma de pensar está na origem do conhecido messianismo norte-americano, justificativa de suas várias intervenções no mundo (Os Estados Unidos são uma “nação singular”: “a república dos homens livres”, “a Nova Jerusalém”, “a cidade brilhante no Alto da Colina”).

Assim, enquanto as relações com a Europa consistiam principalmente em intensas trocas comerciais, com os países latino-americanos havia bastante contatos políticos – basta lembrarmo-nos de que foram os Estados Unidos os primeiros a reconhecer a independência dos países latino-americanos (em cuja esteira, aliás, lançou-se a famosa Doutrina Monroe). Na verdade, o padrão de comportamento norte-americano é, em certo sentido, dúplice, pois implicou, até a Segunda Guerra Mundial, um afastamento da Europa e um intervencionismo na América Latina.

O que ocorre, todavia, é que a expansão das fronteiras sempre foi vista como condição para segurança e prosperidade da república: assim é que se explica o contínuo crescimento territorial, passando de uma estreita faixa de terra no Leste da América do Norte para um país de dimensões continentais, em pouco mais de cem anos – e, além disso, para um país imperial, com a obtenção das ilhas Filipinas após a vitória sobre a Espanha na guerra de independência de Cuba, em 1898.

A expansão das fronteiras tem duas consequências: por um lado, significa que as relações comerciais devem expandir-se continuamente, atingindo países cada vez mais distantes – em fins do século XIX, a política das “portas abertas” obrigou a China a aceitar um acordo comercial com os Estados Unidos. Por outro lado, a América Latina, especialmente a América Central, é vista como parte do Novo Mundo e área importante para a segurança nacional estadunidense.

De modo geral, considera-se que o século XIX caracterizou-se, apesar de alguns conflitos mais ou menos episódicos, por uma tranquilidade generalizada na Europa; sob o signo do liberalismo econômico mantido pela Inglaterra e sua armada, a economia prosperava e os Estados Unidos mantinham-se “isolacionistas”. A partir do momento em que a segurança do sistema internacional foi ameaçada, os Estados Unidos passaram à ação: esse o sentido das intervenções na América Central; a participação na Primeira Guerra Mundial em 1917, e, novamente, em 1941, na Segunda Guerra Mundial.

O período que se inicia em 1917 marca uma inflexão na conduta estadunidense, pois passa-se da reclusão na América para a participação no conflito europeu. A Primeira Guerra foi o primeiro conflito extra americano para os Estados Unidos e – sendo já a maior economia industrial do planeta – sua participação foi fundamental para que a França e a Inglaterra vencessem a Alemanha e a Áustria-Hungria.

Todavia, apesar dos esforços do presidente Woodrow Wilson, os norte-americanos recusaram-se a converter seus recursos econômicos e o prestígio obtido durante o conflito em poder político: mais precisamente, recusaram-se a ser os garantes da nova ordem internacional e da instituição que a representava, a Liga das Nações.

Apesar de fracassado, a tentativa idealista de W. Wilson consistiu no primeiro esforço de os Estados Unidos serem os artífices da ordem internacional – ordem essa considerada tão importante para seus assuntos domésticos.

Referências

CONGRESSO EM FOCO. Harris x Trump: chegou a hora. https://congressoemfoco.uol.com.br/area/mundo-cat/harris-x-trump-chegou-a-hora/.  Acesso em 31/10/2024.

KIERNAN, Victor. Estados Unidos: o novo imperialismo. Trad. Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro, Editora Record, 2009.

KISSINGER, Henry. A Diplomacia das Grandes Potências. Trad. Saul S. Gefter; Ann Mary Fighieira Perpétuo. Rio de Janeiro. Livraria Francisco Alves, 1999.

KISSINGER, Henry. Precisará a América de uma política externa? Uma diplomacia para o século XXI. Trad. Fernanda O´Brien, Jorge Simões, Lucília Filipe e Maria José Figueiredo. Lisboa. Gradiva, 2003.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos. Porto Alegre. Editora da UFRGS, 2003.

(*) José Renato Ferraz da Silveira, que escreve às terças-feiras no site, é professor Associado IV da Universidade Federal de Santa Maria, lotado no Departamento de Economia e Relações Internacionais. É Graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP e em História pela Ulbra. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo