O Capitão América e o espelho da pós-modernidade – por Amarildo Luiz Trevisan
“Aqui, o filme traz um subtexto interessante: a busca por um inimigo...”

Nas telonas do Brasil e dos Estados Unidos, Capitão América: Admirável Mundo Novo se consagra como campeão de bilheteria, mas passa longe dos holofotes do Oscar. Seu espetáculo de efeitos especiais encanta os olhos, enquanto sua narrativa, talvez ironicamente, reflete um momento histórico delicado: a crise da hegemonia norte-americana e a reinvenção de seus inimigos.
A trama se desenrola em um mundo onde os Estados Unidos, após admitir a perda da corrida da globalização neoliberal para a China, voltam-se para si mesmos. O novo presidente, Thaddeus Ross, interpretado por Harrison Ford, simboliza essa tensão interna: pusilânime e inseguro, ele se vê no epicentro de uma disputa internacional pelo Adamantium, metal ultra-resistente descoberto na Ilha Celestial, onde jazem os restos de Tiamut, o gigante de Eternos. A crise geopolítica que emerge coloca Estados Unidos e Japão em rota de colisão, enquanto um atentado contra Ross durante uma reunião de aliança com Japão e Índia acirra ainda mais os conflitos.
Aqui, o filme traz um subtexto interessante: a busca por um inimigo. O medo da China e da Rússia como antagonistas globais dá lugar a um embate doméstico. O inimigo, antes externo, agora se esconde dentro do próprio sistema, bem próximo da Casa Branca. O Capitão América, agora Sam Wilson, se vê diante de um desafio inédito: proteger seu próprio governo de si mesmo. Em um momento de colapso, o presidente Ross, em um surto de fúria, se transforma no lendário Hulk, tornando-se a personificação da inconstância e fragilidade do poder.
Mas o que esse enredo pode nos dizer sobre o mundo em que vivemos? O teórico Frederic Jameson nos ajuda a interpretar essa questão. Para ele, a cultura pós-moderna reflete e reforça os padrões de vida do capitalismo tardio: uma sociedade obcecada pelo consumo e pela espetacularização, sem um horizonte histórico claro. Ao invés de encarar mudanças estruturais, ficamos imersos em narrativas que reciclam o passado e simplificam os dilemas políticos.
Nesse sentido, Capitão América: Admirável Mundo Novo é sintomático. O filme, ao mesmo tempo em que questiona a posição dos Estados Unidos no mundo, reafirma os paradigmas do entretenimento pós-moderno: um ciclo infinito de conflitos espetacularizados, em que a verdadeira transformação é evitada em nome da continuidade do sistema. Assim, o herói luta não por um futuro diferente, mas para estabilizar o presente, reforçando, sem querer, a própria lógica que o filme aparentemente critica.
O “admirável mundo novo” do Capitão América não é um futuro de mudanças radicais, mas um reflexo da nossa própria era: um tempo de crises incessantes, respostas imediatas e uma nostalgia reciclada, onde o novo não passa de uma repetição bem embalada do velho: o (neo)colonialismo.
No entanto, Jameson também sugere que mesmo os produtos da cultura de massa, por mais programados e comerciais que sejam, carregam consigo uma centelha utópica. Afinal, como ele afirma em Reificação e Utopia na Cultura de Massas, a cultura popular não pode ser ideológica sem ser, ao mesmo tempo, implicitamente utópica. E onde encontrar esse elemento em um filme que é praticamente só ação o tempo todo?
Talvez na própria ideia de que o grande vilão da história não é um agente estrangeiro ou um inimigo externo, mas o próprio presidente dos Estados Unidos. Ross é um líder que coloca em risco seu próprio país ao tentar impor acordos unilaterais de exploração mineral e ao sabotar a estabilidade internacional com suas decisões impensadas. Ele é um inimigo interno que precisa ser contido pelas forças de segurança nacionais. E, ao final, é o Capitão América que precisa deter não um invasor estrangeiro, mas um governo que se tornou uma ameaça para seu próprio povo. Qualquer semelhança com o cenário que vive os Estados Unidos hoje, deixo aos leitores a possibilidade de avaliar.
O filme, assim, pode ser lido como um reflexo dos dilemas contemporâneos da política norte-americana, no qual a instabilidade interna e as divisões políticas parecem ser maiores desafios do que qualquer inimigo externo. O “admirável mundo novo” do Capitão América, portanto, é um mundo onde a própria estrutura de poder é questionada e onde, talvez, resida uma fagulha de esperança para aqueles que ainda acreditam na possibilidade de um futuro diferente.
(*) Amarildo Luiz Trevisan é Licenciado em Filosofia no Seminário Maior de Viamão, tem o curso de Teologia, é Mestre em Filosofia pela UFSM, Doutor em Educação pela UFRGS e Pós-doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III de Madri. Desde 1998 é docente da UFSM. É professor de Ciências da Religião e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSM).
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