Resquício – por Liliana de Oliveira
Ler o livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, e me deparar com o poema Resíduo suscitou em mim algumas questões. Ao ler o poema, me deparo com a afirmação de que De tudo ficou um pouco. Leio. Respiro. Reflito.
Sempre fica um pouco de tudo. Sempre fica um pouco de medo, de asco, de grito, de raiva, de amor, de silêncio, de tesão, de paixão… de tudo fica um pouco. À revelia do sujeito, tudo resta. Mesmo aquilo que queremos apagar ou esquecer ainda aparecem como resíduos em nós.
Fragmento, resquício, restante, sobra, saldo, borra, tudo é resquício. Fragmentos de vidas e de encontros, fragmentos de conversas, fragmentos. Seríamos nós nada mais do que resíduos de tudo aquilo que vivemos?
Se conseguíssemos olhar para nossos fragmentos e perceber que esses resquícios deixaram de ser sobras ou saldos quando passaram a nos constituir, poderíamos ver que a vida nada mais é do que o instante. Instante que permite o encontro com o outro e a possibilidade de reter algo. O que retemos está para além de nós. Não escolhemos. Algo sobra ou resta porque há algo em nós que arbitrariamente o retém.
Drummond ainda nos diz que Se de tudo fica um pouco, por que não ficaria um pouco de mim? Se retenho fragmentos dos encontros que vou tendo ao longo da vida, do mesmo modo parece que ao me encontrar permito ao outro que também retenha um pouco de mim. Perplexa me dou conta de que há muito de mim naqueles com quem conversei, ensinei, amei, me encontrei. Perplexa me dou conta de que há muitos resquícios meus pelo mundo. Mais perplexa ainda fico quando me dou conta de que há um mundo em mim. Um mundo de sobras, restos e fragmentos.
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Resíduo
Carlos Drummond de Andrade
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço- vazio – de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um poucode ruga na vossa testa,
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil…
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver… de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão.
Às vezes um rato.
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