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O veneno que vem do céu – por Atílio Alencar

Acho lindo e inspirador quando leio relatos de pessoas sobre a adoção de um estilo de vida mais saudável, principalmente quando isso passa por consumir alimentos orgânicos, preparar a própria comida ou consumir produtos ecologicamente corretos. Por mais que seja um gesto individual, a reorientação alimentar e o cuidado com a comida que consumimos todos os dias podem ser indícios de um crescente senso crítico em relação aos malefícios gerados pela grande indústria da alimentação, que prioriza o lucro em detrimento da saúde das pessoas.

Entretanto, me intriga uma certa tendência implícita nesta onda. Ao tratar a questão alimentar como uma simples opção pessoal entre o saudável e o venenoso, perde-se de vista as condições sob as quais se decide quem produz o que, e quem tem acesso a esta produção. Em outras palavras, há um anulamento – ingênuo, cínico ou puramente alienado – da tensão permanente que divisa quem tem e quem não tem o poder de decidir.

As bochechas rosadas da prosperidade e os olhos fundos de quem calcula quanto do almoço deve ser preservado para a janta não são simples questão de aparência. Neste mundo há os que podem se dar ao luxo de optar pela culinária virtuosa, e, em diferentes escalas, aqueles que simplesmente precisam comer o que está disponível, sob o risco de não comer.

Pensava nisso, entre outras coisas, enquanto o Seu Eduino, morador do Quilombo Ibicuí da Armada, na zona rural de Santana do Livramento, nos mostrava as sementes crioulas que são usadas no cultivo dos campos quilombolas. E a frase melancólica, que ele quase sussurrou enquanto apontava para a imensidão dos latifúndios: “hoje, nosso maior confronto é com o agrotóxico.”

A verdade dessa frase dramática é amparada numa realidade perversa. Apesar da escolha política por não utilizar agroquímicos em suas lavouras, os quilombolas encontram-se encurralados numa atmosfera venenosa. Isso porque a prática da pulverização aérea de agrotóxicos por parte dos grandes proprietários rurais não respeita limites territoriais. Uma vez emitido, o veneno fica ao sabor dos ventos, e nada pode impedir que alcance o solo e os rios das redondezas.

É como um bombardeio sobre os povoamentos – e a metáfora escolhida aqui não é gratuita: alguém lembrou que alguns dos produtos aplicados nas lavouras brasileiras eram utilizados como armas químicas na segunda grande guerra, e já são proibidos há muito tempo em países com legislações sensíveis à ameaça dos agrotóxicos.

Os altos índices de intoxicação entre trabalhadores rurais têm gerado uma mobilização para que se proíba este tipo de aplicação. Mas estamos falando de uma realidade em que a saúde pública é menos importante do que a rentabilidade das estratégias do agronegócio. Se o veneno é eficiente – por mais letal e ambígua que seja a expressão -, porque se deveria parar de usá-lo?

Constatar isso me deixa amargurado demais para poder celebrar a onda veganista com o entusiasmo que o fenômeno solicita. Temos um abismo social imensurável ainda a ser superado. E no fundo deste buraco jazem incontáveis cadáveres vitimados pela ganância e pela ausência de justiça no campo e na cidade.

Bom apetite, o veneno está na mesa. Talvez não na sua, mas na de muita gente que não tem o direito de escolher comer outra coisa. Enquanto isso não mudar, não há muito o que comemorar.

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