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ARTIGO. Ricardo Ritzel, a incrível união de chimangos e maragatos e a prisão do General na praça em 1930

Desfile militar em Santa Maria e o triunfo da revolução de 1930 sem que um único tiro tivesse sido dado pelas partes em conflito

Santa Maria, 3 de outubro de 1930 – 17 horas

Por RICARDO RITZEL (*)

“No Rio Grande era assim: revoluções sempre tinham dia e hora para acontecer. Não ia ser diferente desta vez”, pensou o velho general ao chegar em sua casa naquela sexta-feira, 3 de outubro de 1930.

Homem de hábitos rígidos e praticamente cronometrados durante toda sua vida, só o fato do general Fernando Medeiros chegar bem antes do meio-dia a sua residência tinha causado uma tremenda estranheza entre familiares e empregados.

Este estranhamento se transformou em forte suspeita quando o comandante das forças federais de Santa Maria pede para atrasarem o almoço, sempre tão pontual, e solicita à empregada preparar água quente para um demorado banho.

E as suspeitas da esposa se cristalizaram em um turbilhão de pensamentos quando o marido lhe pede para escovarem seu terno inglês de alpaca negra e, “se possível, colocarem a roupa um pouco no sol para tirar o cheiro de “guardada”. E, sim, o mesmo com seu chapéu de feltro. Iria sair à paisana naquela tarde”.

E o clima tenso se manteve durante todo o almoço, chegando ao ápice quando o velho comandante pediu como digestivo um cálice de vinho do Porto antes do café. Tomou dois. Até então, era um conhecido abstêmio de bebidas espirituosas.

As lágrimas da mulher foram o sinal de situação extrema que fez o general levá-la para seu aposento privado e lá iniciarem uma conversa que durou mais de duas horas.

Ao saírem do quarto, a esposa do oficial tinha na mão um envelope com uma boa quantia em dinheiro para o sustento da casa por vários meses, instruções para os estudos dos filhos, assim como uma lista com ordens minuciosas aos empregados. Além disto, dois homens da maior confiança do marido se revezariam, o tempo que fosse preciso, na segurança de todos.

Os olhos marejados da mulher demonstravam claramente que o comandante militar de Santa Maria iria passar um bom tempo fora de casa.

Às 16 horas e 30 minutos, depois de demorados abraços na família, o velho general retoma sua rotina diária e se dirige ao posto de telégrafos da cidade, localizado na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Venâncio Aires, como fazia diariamente para receber ordens e instruções de Porto Alegre e do Rio de Janeiro.

Por aqueles dias, a iminente revolta era assunto obrigatório em todas as rodas de conversa de Santa Maria. A população apreensiva temia, há dias, uma nova batalha nas ruas da cidade entre as duas unidades do Exército e a Brigada Militar, como já havia acontecido em 1926.

Para piorar a situação, o comandante do 5º Regimento de Artilharia, tenente-coronel Horácio Campelo, vinha afirmando publicamente que cumpriria seu dever e iria lutar até o último cartucho em defesa do governo federal.

Novembro de 1930: gaúchos amarram seus cavalos no obelisco do Rio de Janeiro durante a posse de Getúlio Vargas, o grande comandante da Revolução

Naquele momento, todos em Santa Maria sabiam que a revolução iria eclodir exatamente às 17 horas. Tanto que, quando chegou o dia e o aproximar da hora, a população começou a chegar à Praça Saldanha Marinho na espera do desenrolar dos acontecimentos.

E, de fato, o general Medeiros surgiu em seu carro oficial na mesma hora e local de sempre, porém, nesse dia, estava à paisana. Calmamente o comandante desceu do veículo e atravessou a praça entre os diversos grupos de curiosos. E, em uma atitude evidente de nada a temer, quase uma provocação, entrou na sede do Telégrafo Nacional.

Ao sair do prédio, alguns minutos depois, encara a multidão de frente e calmamente fica a caminhar pela praça como esperasse por alguém. E fica naquele “trotoir” circular até o sino da catedral tocar cinco vezes. Retira o relógio de bolso e confere seus ponteiros. Era exatamente 17 horas.

Alguns minutos depois, surge pela Avenida Rio Branco um automóvel em alta velocidade, parando, praça adentro, a poucos metros onde estava o velho militar. Do carro, descem o major da Brigada Militar, Jorge Pelegrino, o tenente Bernadino Silva e o delegado de polícia, Valenciano Coelho. O comandante legalista de Santa Maria estava preso.

Foi neste instante que a multidão que estava na Praça Saldanha Marinho começou a dar vivas e cantar em apoio à revolução. Pouco depois, o 7º Regimento de Infantaria e o 5º Regimento de Artilharia lançam manifestos em apoio a revolta e aderem em peso ao movimento rebelde.

A revolução tinha triunfado na cidade sem uma única gota de sangue derramado.

Tempos depois, o escritor e memorialista, João Belém, escreveu em seu livro “A História do Município de Santa Maria”, que assim como todos na cidade, o velho general também sabia que ia ser preso naquele dia, naquela hora e, possivelmente, naquele local.

“O brioso militar, que antes de soldado era também muito humano, percebendo que quase toda guarnição estava comprometida com os rebeldes, não quis permanecer no seu quartel-general para não sacrificar nenhum de seus leais oficiais.

Preferiu, sozinho, vir a rua e entregar-se à prisão, evitando assim uma luta inglória e inútil que sacrificaria muita gente moça em início de carreira. Melhor seria sacrificar-se ele só, que já estava velho e prestes a entrar para reserva. Poucos compreenderam a atitude e o gesto altruísta do digno soldado”, concluiu Belém.

Com a revolução triunfante em Santa Maria, jovens, adultos e velhos correram em massa para os postos de recrutamento revolucionários, incorporando as unidades que deveriam ir lutar contra o governo café com leite de Washington Luís.

Em poucos dias, tanto o 1º Regimento da Brigada Militar, quanto o 7º RI e o 5º RAM já não estavam mais aceitando voluntários devido ao grande contingente recrutado para destituir à bala o Governo Federal.

O general Fernando Medeiros ficou detido em Santa Maria até o início de novembro. Foi solto logo após a posse de Getúlio Vargas como presidente da República, quando retornou, já na reserva, para o convívio de sua família e amigos.

Em Porto Alegre, revoltosos – que tiveram a liderança de três gaúchos – e a população celebram a vitória sobre as forças legalistas

Quando se junta chimangos com maragatos…

Pode-se dizer que, desde o assassinato de João Pessoa, em meados de 1929, a alta cúpula do governo gaúcho planejava a revolução e a queda da Velha República.

E está era uma causa tão nobre no Rio Grande do Sul, que os próprios chimangos legalistas convidaram seus mais aguerridos inimigos, os maragatos, para lutarem do mesmo lado.

E eles aceitaram.

Mesmo tendo na liderança do movimento rebelde um trio de algozes de seu movimento em outras refregas e peleias pelo pampa gaúcho: no comando político, Getúlio Vargas (filho do velho general Maneco Vargas); na liderança militar, general Flores da Cunha; e na articulação nacional da revolução, Osvaldo Aranha.

E foi tão forte e unânime este alistamento nas fileiras revolucionárias, que até mesmo o mais famoso líder maragato daqueles dias, general Honório Lemes, apoiou e participou da conspiração que uniu as duas facções inimigas. Ele só não entrou em combate na revolta armada de 30 por ter falecido antes, de causas naturais.

E todo este conhecimento de combate dos, agora unidos, chimangos e maragatos foi aplicado na conspiração. Exemplo da riqueza de detalhes empregados na trama rebelde foram os túneis e trincheiras cavados por antecipação perto de quartéis legalistas onde acreditavam que haveria resistência armada.

Outro, entre tantos, os treinamentos da guarda municipal que todas as tardes, por volta das 17 horas, realizava exercícios militares pelas ruas de Porto Alegre, sempre passando na frente do Quartel-General, na Rua da Praia. E foi assim durante meses, até que os governistas se acostumassem com a movimentação de tropas e considerassem rotina aquelas demonstrações militares.

Quando chegou o dia 3 de outubro, os inofensivos exercícios se mostraram um fator surpresa e o assalto e tomada do QG federal foi feito em poucos minutos por um general Flores da Cunha de revólver em punho e muito poucos homens. Todos veteranos de outras revoluções.

Na tarde do dia 4 de outubro, todas as cidades gaúchas já estavam sob o comando do movimento revolucionário. No dia 24, o Rio de Janeiro e, consequentemente, todo o Brasil.

(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 –Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

Nota do Editor. As fotos que ilustram esse artigo são reproduções de internet.

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Um Comentário

  1. Muito bom. Frente Única Gaúcha na revolução de 30. Quando Getúlio trocou o lenço branco chimango pelo vermelho dos maragatos. Alás, o pai de Brizola foi morto em 23 pelo pessoal do Borges, era maragato. Alás, em 32 Antônio Chimango estava do lado ‘errado’ e acabou exilado em Recife.

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