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Comer e beber mantém corpo e alma integrados – por Jorge Luiz da Cunha

No fim de semana passado voltei ao lugar onde nasci. A Linha Constância fica em Roca Sales, no belíssimo Vale do Alto Taquari. Fui recebido com um almoço típico em que o prato principal era o tradicional assado de carne de porco. A refeição fez com eu me lembrasse de uma frase que ouvi muitas vezes, dita pelo meu avô: – Essen und Trinken hält Leib und Seele zusamenn – ou seja, “Comer e beber mantém o corpo e a alma integrados”, um ditado alemão que remete a uma questão que integra a totalidade da cultura humana e a compreensão que dela se tem desde o início da humanidade. O máximo que se poderia acrescentar é a necessária imposição de limites para o comer e o beber: – Dummheit frisst um säuft, Inteligenz ist Genuss! – “A idiotice devora e consome, a inteligência aprecia”. Mas, como o primeiro ditado mesmo conclui, comer e beber são entendidos como uma unidade, assim como o corpo e a alma só se separam com conseqüências trágicas. Portanto, o comer também tem a sua dimensão espiritual, seu sentido profundo e singularmente humano e, até, sua função de sustentação metafísica.

Nossa civilização ocidental cristã funda sua cultura na rememoração descrita no Novo Testamento. A última ceia, a lembrança de Jesus em torno de uma mesa de refeições. Apesar disso, diante de um bom assado de porco – Schlachtplattt – , raramente nossos pensamentos alcançam esta profunda complexidade de reflexão sobre o sentido da história da cultura humana. 

O papel que a criação doméstica de porcos e a Schlachfest – o festivo dia do abate de um porco na propriedade de um pequeno agricultor e sua família, descendentes de imigrantes alemães que chegaram ao sul do Brasil em meados do século 19 -, desempenham; e tudo que a estes aspectos se relaciona nas nossas lembranças e representações (também na tradição de nossa existência urbana atual) desaparecem diante do prazer de saborear um bom prato. Contudo, e pelo valor objetivo e subjetivo do prazer da alimentação, a criação doméstica de porcos e a Schlachtfest serão tomadas, nesta pequena reflexão, como portas de entrada para revisitarmos nosso passado.

A invenção da agricultura e a domesticação de animais são consideradas pela totalidade dos historiadores como o marco do desenvolvimento da cultura. Etapa fundamental para a própria sobrevivência da espécie humana neste planeta. Momento histórico relacionado ao sentido, ao desenvolvimento e ao estabelecimento de diferentes formas de organização social, até a formação de diferentes povos e Estados. A agricultura e a criação de animais domésticos decorrem do abandono do nomadismo e da fixação em territórios definidos graças à relação entre a produção agrícola de cereais, hortaliças e frutas, e a criação de animais domésticos que, alimentados com o resultado da abundância agrícola, supriam de proteína animal os seus criadores, estendendo as condições de sobrevivência, saúde e conforto e, consequentemente, a expectativa de
vida.

Os primeiros animais domesticados foram os porcos. As pinturas e gravados feitos há mais de 10 mil anos nas paredes de cavernas européias já o indicam. Provavelmente nossos antepassados, além de caçar porcos selvagens e domesticá-los para suprir suas necessidades de carne com mais regularidade, usavam o porco como animal de sacrifício aos deuses.  Quase nenhuma cultura deste planeta, onde os porcos foram domesticados e criados, deixou de usá-los como oferendas aos deuses. Desde os antigos egípcios até os habitantes das ilhas da Oceânia, entre os Chamãs coreanos e entre os heróis da Grécia Homérica, o porco se faz presente nos rituais religiosos.

O porco selvagem foi domesticado na Ásia e no Oriente Próximo, há cerca de 8 mil anos. Na Europa, contudo, o animal passou a representar a principal fonte de carne em torno de 4 mil anos atrás. Durante muito tempo, como o atestam as figuras e imagens medievais e até o início da modernidade, o porco doméstico preservou algumas características físicas do seu antepassado selvagem, o javali. Ainda que bois e vacas, como animais de criação e de tração, sempre tenham sido importantes, pela carne, leite, manteiga e queijo que ofereciam à alimentação humana, desde o começo da Idade Média na Europa Central, foi a criação de porcos que representou e continua representando ainda hoje a principal reserva de proteína animal.

Os porcos pastavam em rebanhos pastoreados pelo Schweinhirt – “pastor deporcos” – nos bosques, brejos e prados, e eram, também, alimentados e criados em cativeiro. Graças à sua capacidade de adaptação alimentar (os porcos comem de tudo!) e rápida maturidade para o abate, logo se tornaram animais valiosos. Relatos medievais descrevem o pastor de porcos conduzindo-os pelas ruas de sua aldeia, logo nas primeiras horas da manhã, em direção ao bosque de uso coletivo onde podiam se alimentar de bolotas de carvalho, castanhas silvestres ou sementes de faia.

Ainda em 1925, uma publicação sobre os costumes populares do Palatinado Alemão, descrevia a prática do pastoreio de porcos como uma sobrevivência diante da racionalização da criação sistemática em cativeiro. Quem de nós, da primeira ou segunda geração de descendentes de imigrantes alemães ou italianos, que na década de 1960 migraram para as cidades brasileiras, não se lembra de um tio ou avô que mantinha em sua pequena propriedade um pomar de laranjeiras e bergamoteiras cercado, onde criava livres os porcos para consumo da própria família? Os animais para a venda eram criados nos chiqueiros, de forma racional e econômica, mas, seguramente não produziam uma carne tão saborosa e uma gordura tão cheirosa como a dos suínos criados livres.

Lembro de uma explicação a respeito desta prática dada por meu avô quando eu – ainda no começo da adolescência – passava as minhas férias escolares na propriedade da família no interior. Meu avô explicava que os porcos são animais inteligentes e sagazes, e muito limpos quando em estado selvagem ou quando criados livres. Ainda hoje, em todas as regiões da Alemanha, o porco é considerado um animal que representa fortuna e boa sorte. Tanto que, quando se quer desejar boa sorte a alguém, deseja-se Schwein – porco!

Fica a saudade! Da boa comida caseira, da vida simples e de bens relacionais que estão na base de nossa cultura, que a vida urbana, agitada e consumista, teima em tentar nos fazer esquecer.

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