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Um beijo puro como só a amargura de uma esquina pode revelar – por Luiz Alberto Cassol

Posso ter uma imensa dificuldade em gravar nomes ou senhas. Mas guardo cenas e recordo falas que me libertam e tantas outras que me aprisionam. Com elas calo fundo ou falo entusiasticamente. Isso é meu. Da minha natureza. Por vezes é positivo e tantas outras, negativo.  É difícil conviver com algumas imagens e cenas.  Escrevo esse texto de forma rápida. Quase como um desabafo. Então, vamos a uma dessas cenas. A verdade é que faz algum tempo que eu queria ter escrito um texto sobre esse momento, essa cena que vi e que me marcou definitivamente. Ela é minha companheira.  Está sempre em minha retina. Penso nela com frequência e em algumas ocasiões de forma especial. É o caso.

Após toda a polêmica da Praça Saldanha Marinho ouvi uma senhora externando num programa de rádio a seguinte opinião: agora só falta “eles retirarem” as crianças que vivem no local.  Eles quem cara pálida? Eles, os outros? As autoridades? O papa? Eles são todos nós! Tanto os que vivem nas ruas como os que a senhora solicita o pedido. Cansei de ouvir, ler e conviver em ambientes onde as pessoas acham que outras que vivem nas ruas são alheias de nossa realidade. Elas são todos nós. E não é só aqui no Brasil. É no planeta inteiro.

Vamos parar de jogar culpa ou projeções de sentimentos nos outros. Vamos pensar juntos. No mínimo refletir sobre. E não sair por aí de dedo em riste, fazendo acusações a esmo… menos a nós mesmos. Viver na rua pode ser inclusive uma escolha.  Mas, o mérito aqui discutido não é esse. O que falo é dos excluídos. Dos apartados. Aqueles que muitos desejam ignorar, esquecendo de algo tão básico quanto sublime: somos todos seres humanos. Vivemos, convivemos e temos as mesmas angústias, dificuldades e alegrias.

O momento a que me referi no início do texto foi uma viagem que fiz a Córdoba, na Argentina. Fui convidado para ir até aquela bela cidade para falar sobre documentário, cineclubismo, festivais e integração. Isso em outubro de 2007, durante a “XVII Muestra de Cine y Video Documental Antropológico y Social”. Atividade muita bem organizada e com uma cordialidade ímpar dos anfitriões.

Para mim, além dos intercâmbios culturais e amizades que fiz desde aquele momento, o encontro ganhou outra conotação desde a passagem que segue. Tenho essa cena linda e brutal comigo. Uma imagem leal com o que penso e com o que é de todos nós. Somos todos essa cena. Vamos à situação.

Duas pessoas da organização me buscaram no hotel e, de táxi, nos dirigíamos à Universidade Nacional de Córdoba, local da palestra. O trânsito parou. E por um considerável tempo a cena me foi enquadrada pela janela do carro. Que estranha metáfora, essa do vidro que separa, e que agora me fez escrever em resposta a todos os que pedem que outros saiam de seu campo de visão.

A família vendia na esquina vários produtos para carros, entre eles, o principal, limpadores de parabrisa. Eram três e a organização das tarefas era bem dividida. Entre um sinal verde e outro a atividade comercial se repetia. Um primeiro anunciava o produto e caso o motorista adquirisse, um segundo fazia o acerto financeiro. Calculava o troco e repassava o lucro a um terceiro que guardava em uma caixa de sapatos. Esse último, numa calçada, como um guardião ao lado do caixa e dos produtos a serem vendidos.

Seria uma atividade normal – ainda que desumana, pois perigosa pelo risco do trânsito – não fosse a idade e a forma com que estavam divididas as tarefas. O primeiro era um homem de cerca de quarenta anos que anunciava os produtos. Era apenas essa a sua tarefa. Caso se encaminhasse a venda ele sinalizava ao segundo. E lá vinha uma menina de 10 anos correndo pelo meio dos carros. Era ela que acertava toda a questão financeira. E dali, rapidamente, por entre os veículos se dirigia ao guardião do cofre. Esse, abrigado por uma lona em forma de barraca, abria a caixa de sapatos e ela colocava notas e moedas dentro. A menina pegava um novo limpador de parabrisa e corria. Então ele, um menino de cinco anos, fechava a tampa garantindo a sobrevivência de todos.

Pelo bom tempo em que ficamos ali parados, constatei que a venda era escassa. O choque evidente pelo trabalho infantil me confundiu com o que eu via. No entanto, a cada negócio feito a alegria dos três era contagiante. Algo que jamais tinha visto numa rua ou, talvez, verei novamente. Não era efêmero aquele sentimento partilhado por eles. Ele, ao dizer a palavra filha, falava, não gritava. Ela vinha com um equilíbrio e orgulho contagiantes. Não sei se aquela barraca de lona era sua casa também durante a noite. Mas ali estava aquela família em meio ao trânsito sorrindo de uma forma a dar socos em todos nós.

O carro arrancou e ainda vi aquela que seria a cena mais marcante. A menina, após entregar o dinheiro na caixa de sapatos, beija docemente a testa do irmão. Um beijo puro como só a amargura de uma esquina pode revelar.

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Um Comentário

  1. Oi, Cassol
    Extrair beleza dessas cenas doloridas e ternas é coisa para gente sensível. É essa mesma sensibilidade que te forja como bom cineasta, e vai te levar adiante.
    Parabéns!
    abrs
    Tania

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