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Sem perder a ternura – por Bianca Zasso

No cinema e na literatura são comuns personagens femininas obrigadas a se masculinizar para sobreviverem.  Jill, a prostituta interpretada por Claudia Cardinale em Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone, teve que aprender a se virar para seguir em frente depois que a estrada de ferro dominou as cidades do interior dos Estados Unidos. A sargento Ripley, vivida por Sigourney Weaver em Alien – O oitavo passageiro, de Ridley Scott, deixa a feminilidade de lado para encarar um monstro espacial.

Num mundo dominado pelos homens como é o do cinema, uma mulher que assume uma função importante em uma equipe de filmagem pode ser considerada uma heroína. Ainda mais quando o que o que é captado pelas lentes das câmeras são cenas que transbordam testosterona.

Por mais que não sejamos mais obrigadas a gostarmos de coisas delicadas e que exigem mais dedicação do que força, nós mulheres sempre deixamos a emoção falar mais alto. E lágrimas não são lá coisas de menino, dizem por aí. Se há uma moça que conseguiu dosar com competência e talento essa louca mistura de ação com sentimento é Kathryn Bigelow.

Nascida na Califórnia, ela estudou pintura antes de se dedicar ao cinema. Talvez esse seja um dos motivos pelo qual seus filmes são cheios de texturas violentas e desoladoras. Ainda no tempo em que fazia pós-graduação na Universidade de Columbia, a diretora abusou de explosões, tiros e sangue.

Uma prova disso é o curta-metragem The set-up, seu “filme de formatura”, um estudo sobre a violência. O que veio na sequência foram produções que misturam gêneros e mostram o olhar original de Bigelow para temas comuns do universo masculino.

Quando chega a escuridão, lançado em 1987, é um filme de vampiros com toques de faroeste, o que torna a batalha ainda mais feroz. O terror permite que a diretora abuse de mordidas, dentes sujos de sangue e outros rituais típicos do gênero. A receita se repetiu no ótimo Jogo Perverso, de 1989, um filme policial que a cineasta temperou com os melhores ingredientes do cinema de horror, e em Caçadores de emoção, produção do início dos anos 90 estrelada por Patrick Swayze e que influenciou a franquia Velozes e Furiosos. Apenas no tema e não na qualidade, diga-se de passagem.

Mesmo com toda a ação de suas produções na década de 80 e 90, o filme mais violento e impactante da carreira de Kathryn Bigelow veio em 2008 e lhe trouxe prêmios importantes e inéditos. Guerra ao terror é mais quem um filme ambientado no Iraque. Mesmo que as cenas de ação, as explosões e a tensão sejam responsáveis pelas melhores cenas, o filme fala de algo que não pode ser materializado nas telas. É um filme sobre o poder do medo e o desejo  insaciável que certos pessoas têm pelo perigo. Logo na abertura podemos ter uma ideia do que nos espera. A frase do jornalista Chris Hedges surge na tela e nos tira o chão: “A emoção da batalha costuma ser um vício letal e potente, pois a guerra é uma droga.”

Na grande maioria das produções que têm os conflitos no Iraque como pano de fundo, os protagonistas são soldados que não concordam com a guerra e querem voltar vivos para suas casas. Em Guerra ao terror, o sargento William James, interpretado com força por Jeremy Renner, quer bombas e mais bombas. Desarmar artefatos explosivos é sua razão de viver. A adrenalina do trabalho traz prazer e, tal qual uma droga, faz falta ao organismo de James. Bigelow conduz as cenas com timing e se vale de um ar documental para filmar tiroteios.

Guerra ao terror é um tratado sobre essa vontade inexplicável de sentir medo que move alguns homens. E também é um bom filme de guerra, com todos os tiros que público admirador do gênero tem direito. Bigelow entende da coisa e, em certos momentos, esquecemos que por trás de toda aquela violência, interna e externa, há uma mulher.

Guerra ao terror chegou aos cinemas sem fazer alvoroço. Parecia mais uma produção disposta a fazer crítica política contra a guerra do Iraque. Apesar da estreia discreta, Guerra ao terror levou o prêmio máximo no Festival de Cinema de Veneza, um dos mais importantes do mundo. Em seguida, vieram as indicações ao Oscar, em nove categorias.

Um dos motivos para o filme não ter feito tanto barulho foi o lançamento de Avatar, produção em 3D de James Cameron que dominou as bilheterias da época. Cameron foi casado com Bigelow durante três anos e, agora, disputava público e crítica com a ex-esposa.

Mesmo que Avatar tenha superado muitos recordes e trazido novas técnicas de filmagem para a sétima arte, quem levou a melhor foi Bigelow, a primeira mulher a levar para casa um Oscar de Melhor Direção. Guerra ao terror ainda faturou mais cinco estatuetas. Na época da premiação, ambos disseram admirar um o trabalho do outro e não levarem a competição a sério.

Deve ser verdade. James Cameron pode não ser um gênio, mas não é bobo. Ele sabe que entende de inovações tecnológicas e que sua antiga amada entende de ação e soldados perturbados. Como uma boa mulher do seu tempo, Bigelow se masculinizou para sobreviver. E o público foi quem levou a melhor.  Mesmo com todo o sangue e todo o tiro, mulheres não perdem a ternura.

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