Cantar e brincar – por Luciano Ribas
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A oposição entre vida e morte talvez seja a fonte mais primitiva de todos os dualismos. Nascer e morrer, os momentos extremos da existência humana, são atos tão naturais quanto o sol se elevar no horizonte e a noite cobrir a Terra. Mas a morte é um ponto final, um encerramento, a negação suprema. Ou seja, morrer não tem graça nenhuma, ainda mais quando quem nos deixa é Eduardo Galeano, um sujeito capaz de escrever algo assim:
“Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: proibido cantar. / Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: é proibido / brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: ainda existe gente que /canta, ainda existe gente que brinca.”
Galeano era um dos pilares da esquerda latino-americana. Um humanista bem-humorado, que perguntou ao presidente Mujica o que ele fazia ali, ao pé da sua cama hospitalar, antes de mandar-lhe governar o país ao invés de perder tempo com ele. Mujica e Galeano trocando amistosas ironias, um encontro que não testemunhei, mas que existirá para sempre na minha mente…
Mesmo reconhecendo a minha insignificância, saber que sempre estive do mesmo lado que Eduardo Galeano e Pepe Mujica me deixa feliz. Isso porque o lado deles é o da utopia, aquela que está sempre dois passos à nossa frente, mas que nos guia como um vício irrenunciável e não nos deixa desistir de lutar por um mundo onde o “ser” seja infinitamente mais importante do que o “ter”.
Galeano não caminharia ao lado da maior parte das pessoas que foram às manifestações de 12 de abril. Da esmagadora maioria, na verdade. Estavam lá pessoas que aplaudiram a ditadura assassina e que ajudaram a eleger Jair Soares, Collor, FHC, Britto, Rigotto, Yeda e Sartori. Que acham bonito um imberbe dizer que “deveriam meter uma bala na cabeça do PT” e que só lembram de que são brasileiros nas Copas do Mundo ou quando querem destilar ódio em praças públicas. A eles, o grande uruguaio talvez reservaria apenas um velho provérbio turco, que diz que “quem bebe por conta, emborracha-se em dobro”.
Sobre a morte, Eduardo Galeano disse que ela mente e que, muitas vezes, quando imaginamos que alguém morreu, este alguém continua presente “nas memórias, nas conversas, nas decisões”. Se assim for, que o primeiro parágrafo deste texto seja solenemente ignorado e que Eduardo Galeano viva para sempre em cada ser que canta e brinca.
Era feito aquela gente honesta boa e comovida que caminha para morte pensando em vencer na vida…
Luciano obrigado por este texto tão terno como o sono de uma criança e ao mesmo tempo tão forte como a força que Galeano, Mujica,Flávio Kutiz Dilma e todos os companheiro da América Latina tiveram para enfrentar as Ditaduras.Realmente só morre aquele não deixa lembranças.
Só não reve ideias quem não as têm ou as considera dogmas…
Galeano representava bem a esquerda latino-americana. Na bienal de BSB disse sobre 'As Veias Abertas': "pretendia ser um livro de economia política, mas eu não tinha o treinamento e o preparo necessário". Reconheceu o óbvio e completou: "eu não seria capaz de reler esse livro; cairia dormindo. Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é extremamente árida, e meu físico já não a tolera."