KISS. Em entrevista, Elissandro Spohr diz que quer ser lembrado por ter ‘arrastado mais culpados ao processo’
Por FABRÍCIO MINUSSI (texto) e GABRIEL HAESBAERT (foto), na versão online do jornal A Razão
Perguntado sobre como acha que será lembrado em relação ao incêndio na Boate Kiss, que matou 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013, Elisandro Spohr, o Kiko, um dos sócios da casa noturna respondeu: “Se houver Justiça nesse mundo, como aquele que arrastou para o processo criminal todos aqueles poderosos que se esconderam atrás dos seus cargos e se protegeram jogando a culpa toda para os quatro mais fracos.”
Um dia após o depoimento do também sócio da Kiss, Mauro Hoffmann, no encerramento da fase de instrução do processo criminal, Kiko concedeu entrevista para A Razão. O dono da Kiss e ex-músico falou, pela primeira vez a um veículo de imprensa de Santa Maria, sobre arrependimento, culpa, omissão, luto e punição.
“Qualquer pessoa que teve algum tipo de contato com a Kiss e que podia fechar a boate tem que responder. Eu fui fiscalizado e orientado a fazer o que fiz. Isso tudo sim é muito sério. Não aceito que me chamem de assassino. Todos temos nossas culpas. Mas a minha maior culpa foi ter confiado em pessoas que se dizem autoridades”, disparou.
Na entrevista, Kiko cita que Mauro Hoffman e o ex-assistente de palco da Banda Gurizada Fandangueira, Luciano Bonilha, não deveriam estar sentado no banco dos réus. Ele também falou sobre o vocalista da banda, Marcelo de Jesus, que manuseou o artefato que deu origem ao incêndio na espuma do teto da boate. Confira, no quadro, a entrevista de Kiko Spohr (material na íntegra pode ser conferida em www.arazao.com.br ).
Prazos – Encerrada a fase de instrução do processo criminal a expectativa fica, agora, por conta dos prazos para as considerações finais da defesa e acusação – trinta dias a partir de 21 de janeiro à Promotoria e mais sessenta dias para a defesa a contar de 21 de fevereiro. Após, o juiz Ulysses Fonseca Lousada fará a pronúncia da sentença, confirmando a acusação de homicídio com dolo eventual, levando o caso a Julgamento Popular, ou se os réus responderão por homicídio culposo,
QUERO SER LEMBRADO COMO AQUELE QUE ARRASTOU MAIS CULPADOS AO PROCESSO
A Razão: Após todos os depoimentos dos réus no processo criminal o que o Kiko espera que aconteça? Disse que tem culpa? Culpa de que?
Kiko: Disse e repito tenho a minha parcela de culpa, como cidadão, como pai, como eleitor, já que vejo muita política nisso. Sinto nojo quando vejo os políticos explorando o sofrimento de todos, especialmente dos familiares. Não aceito que me chamem de assassino, porque todos temos nossas culpas, mas a minha maior culpa foi ter confiado em pessoas que se dizem autoridades, mas que são verdadeiros incompetentes.
A Razão: Se tem culpa como acha que deve ser punido? O que seria justo?
Kiko: Nós estamos sendo punidos desde o dia 27 de janeiro e vou seguir me sentindo culpado por ter confiado nos órgãos públicos pro resto da minha vida. Se eu tivesse desconfiado, se tivesse feito mais do que me pediram, mas juro que não pensei que pudesse acontecer algo assim. A punição veio pra todos nós que estamos envolvidos no processo. Os outros é que estão rindo em casa, depois que foram omissos.
A Razão: No depoimento houve fortes críticas a Prefeitura, Bombeiros e Ministério Público. Você realmente se sente injustiçado e “vitimado” por esses órgãos? Acha que alguma pessoa poderia ter impedido essa tragédia? Quem e que de forma?
Kiko: Qualquer pessoa que teve algum tipo de contato com a Kiss e que podia fechar a boate tem que responder por culpa sim. Quem me fiscalizou entrou e saiu pela mesma porta, viu aquela porta, viu os ferros, viu a espuma e são essas as pessoas responsáveis por dizer o que é seguro, o que deve ser feito e o que não pode ser feito, eles são os profissionais que dizem o que fazer e eu fiz tudo o que mandaram. Eu penso que todo mundo achou muita coisa na época, mas agora todos estão calados se escondendo e fugindo das responsabilidades. Eu me sinto muito mal, mas estou cansado de ser saco de pancadas de políticos e promotores omissos. Tanta banda tocou, tanta gente foi na Kiss, meus amigos, e nunca ninguém falou nada, nenhum bombeiro, nenhum fiscal da prefeitura, nem os promotores. Se ninguém imaginou, porque eu teria que saber. Não imaginei isso, não queria isso, assim como ninguém queria. Poderia acontecer em qualquer casa e o culpado seria o dono dela. As coisas estavam muito erradas e continuam. Se chorar o quanto eu choro ajudasse em alguma coisa, se eu morrer na cadeia ajudasse de alguma forma, mas é horrível pensar que fiz tudo o que mandaram e alguém vai na minha casa e acende um fogo daqueles. Meu depoimento foi agressivo com autoridades sim, mas porque elas erraram e erraram feio, foram omissos, não fizeram o que deveria ser feito, não fecharam a casa. Era só chegar lá e me dizer que estava errado e eu arrumaria. Quando eu falo do prefeito, não tenho nada pessoal, assim como o promotor e os bombeiros, sei que são pessoas que deveriam ter agido de forma diferente, como eu deveria também. Mas não é justo, porque eu sofri para ter os alvarás graças à incompetência de todos esses órgãos públicos que eles comandam.
No inquérito civil que a Kiss tinha no MP, uma vez eu fui ao promotor e pedi que mandasse um oficio para a prefeitura, direto ao prefeito, solicitando uma explicação, pois eu não sabia mais o que fazer comtanta demora, tanta bagunça. Também falo dos engenheiros, porque parece que eu decidi, como um louco, que era necessário colocar espuma. Na verdade eu fui orientado a fazer isso, depois de gastar um monte de dinheiro exatamente para não ter espuma. Eu vou me defender e não quero o mau deles, mas estou falando a verdade e eles estão mentindo. Se o engenheiro fosse correto ele – e o correto é falar a verdade – seria tranquilo pra mim, pois ele havia posto espuma no Muzeo, no Boemia e mais outros. Bastaria que todos dissessem a verdade, como eu fiz. Deus sabe que não queria algo assim e sei que ninguém queria, mas não foram coisas da minha cabeça. Eu fui fiscalizado e orientado a fazer o que fiz. Isso tudo sim é muito sério, porque eu sempre quis fazer o que fosse melhor para os meus clientes, para os frequentadores da Kiss, tudo era pensando no melhor pra eles. É duro e me dói, me dói de verdade, ver o sofrimento dos pais, ainda mais quando o que eu mais queria era ver os filhos deles voltarem pra casa felizes porque passaram bons momentos com amigos na minha casa. Eu era um Kiko feliz e esqueci como é ser feliz. Faz muito tempo que não sei mais o que é isso.
Minha vida era maravilhosa, porque eu estava vivendo um sonho, ter uma boate para tocar com a minha banda e que fosse a melhor casa da região e até do estado. Sinto-me aliviado depois do meu interrogatório, porque eu pude esclarecer as coisas e apontar o dedo para aqueles que devem responder comigo pelo fato. Graças a Deus, eu senti muita energia para falar por todas aquelas horas e ainda sinto que tenho coisas a dizer. Não vou calar enquanto os irresponsáveis que concederam os alvarás não forem processados. Quanto aos bombeiros, sei de alguns que estão dizendo que, por minha culpa, eles estão sendo acusados. Mas eu pergunto: eu que me dei os alvarás por acaso? Não. Eu subornei? Não. Eu induzi em erro? Não, porque eles que me induziram ao erro. Então tenho que tratar os bombeiros como meus caros colegas de erro. Vamos ter que começar a entender que erramos. Enquanto não abrirmos nossos corações e dizer que sim, em algumas coisas nós erramos, ninguém vai nos perdoar é nem nos mesmos. Chega de culpar o Kiko por tudo e tirar o corpo fora. Eu posso dizer uma coisa aos pais e a quem perdeu tudo: a luta de vocês é a mesma minha, mas de ângulos diferentes. Eu quero responder pela minha culpa, mas não aceito que os outros fiquem na rua, rindo, vivendo suas vidas como se não fossem omissos e incompetentes. Eu me sinto injustiçado sim, sinto uma sensação de impotência inacreditável.
A Kiss era o lugar onde todos se encontravam para dar risada e toda a felicidade acabou assim dessa forma tão triste. Não houve ganância, houve emoção, felicidade em melhorar, em crescer e fazem algo bem feito para todos que iam a Kiss. Um músico levanta um fogo e acaba com meu sonho e com o sonho de todos aqueles jovens e dos pais. Na Kiss, éramos todos amigos uns dos outros, sem diferença de funcionário, frequentador, segurança ou outro. Era um clima alegre onde todos se sentiam bem. O movimento da Kiss (e das outras boates) beneficiava a cidade toda, porque a cada noite de festa, os salões de beleza, as lojas de roupas e calçados, os restaurantes, enfim, o comércio era movimentado por todas as pessoas que se preparavam para as festas. Na Kiss, tocaram mais de cem bandas de todos os lugares do País. Enfim, alguém tem dúvidas de que eu adorava fazer as festas com toda essa galera de amigos e ver todos felizes se divertindo num ambiente saudável e em absoluta segurança.
A Razão: Além de você, desses órgãos públicos e da banda, mais alguém teve culpa nessa tragédia? quem e de que forma?
Kiko: Sim. De certa forma, nosso país não pensa os problemas antes. Precisa sempre acontecer uma tragédia para que as pessoas acordem para o que está errado. Até hoje não foi criada uma lei que acabe com a bagunça dos alvarás. Até hoje não foram resolvidos os principais problemas e as casas ainda apresentam os mesmos problemas de segurança que a Kiss. As pessoas precisam exigir que o estado funcione. As pessoas não tem culpa pela tragédia, mas depois do que aconteceu, todos precisam exigir que as casas que são inseguras, não sejam permitidas de funcionar, porque os políticos, o MP, as Prefeituras, todos esses já estão omissos de novo como antes. Quando a imprensa parou de falar na tragédia da Kiss, os vaidosos viram que não teriam mais mídia e pararam de trabalhar de novo.
A Razão: Algumas pessoas consideram uma estratégia declarar que nunca viu algum show pirotécnico? O quem tem a dizer?
Kiko: Uma coisa é permitir as velas de uso indoor e fazer um clipe fora do horário da boate com a minha banda. Outra coisa é o que a banda Gurizada Fandangueira fez. Um artefato proibido foi comprado e colocado na mão do cantor que levantou ele em direção à espuma. O que eu quero dizer é que nunca, nunca mesmo, eles fizeram isso lá na Kiss. Primeiro, porque teria pegado fogo se fizessem antes. Segundo, porque isso é tese de defesa do cantor para empurrar a culpa para mim, como se eu fosse permitir que queimassem toda a minha boate. E eu tenho certeza que não foi feito.
A Razão: Disse que Mauro Hoffmann não gerencia a casa, acha que ele não deveria estar sendo acusado? Porque?
Kiko: A entrada do Mauro na sociedade, não foi por acaso. Eu, como todos os outros donos de boates de Santa Maria, nos espelhávamos no Absinto, que era a casa mais organizada da cidade. Tendo o Mauro de sócio eu teria mais certeza de bom público em todas as festas, porque a Kiss fazia uma festa com bom público para várias festas mais vazias. Não era sempre lotada como dizem. Com o Mauro na Kiss, eu teria o capital de giro que necessitavam porque gastei tudo o que tinha e o que não tinha para realizar as obras que o promotor exigiu no TAC. Na nossa conversa, eu deixei bem acertado que venderia a metade, mas com uma condição, que eu seguisse como único administrador da casa. Ele aceitou, porque não queria ter esse ônus. Ficou bom para os dois. Mauro não deveria nem ter sido indiciado.
A Razão: Sobre o Luciano Bonilha disse que ele não deveria estar ali? Porque? Mantém essa posição?
Kiko: Antes de dono de boate, eu era músico. Eu sei o que é um auxiliar de palco. Ele fazia o que a banda mandava. Eu não conhecia o Luciano, mas consigo imaginar ele, feliz da vida, auxiliando a banda nos show, dentro e fora da cidade. Eu vim a conhecer na cadeia e vi que ele é um cara simples, gente boa, era um dos melhores amigos do finado Danilo, enfim, não posso imaginar que ele quisesse causar o incêndio. Nenhum de nós deveria estar nessa situação, respondendo como assassinos. Temos responsabilidade, mas não somos assassinos.
A Razão: Declarou que se arrepende de ter comprado a casa noturna? Existe algum outro arrependimento no período a frente da Kiss?
Kiko: O arrependimento vem de ter aceitado como verdadeiros os alvarás dos bombeiros e da prefeitura e ter seguido trabalhando como me disse o promotor de justiça. Fiz o que me disseram que podia. Me arrependo de ter seguido o que essa gente me disse.
A Razão: No depoimento em Santa Maria o Kiko disse que tinha 800 pessoas na casa noturna na noite da tragédia. Fazendo as contas, são 242 mortos e mais de 600 feridos. Como explicar essa matemática?
Kiko: Um inquérito mal feito pode acabar com a vida de alguém e iludir um país inteiro. Não se pode dizer a lotação de um lugar por depoimentos, qualquer um sabe. Nós tínhamos um limite de 800 pessoas e não estávamos nele ainda. Isso não é superlotação, porque com esse número as pessoas ficavam confortáveis na boate, mesmo que sentissem mais aperto próximo do palco na hora dos shows.
A Razão: Disse que estava vivendo com ajuda de familiares, pode explicar isso? É uma opção ou tem dificuldade para arranjar emprego?
Kiko: Não quero falar sobre isso.
A Razão: Pretende voltar a morar em Santa Maria?
Kiko: É triste pensar nisso, mas nunca mais poderei viver em Santa Maria.
A Razão: Alguma coisa deixou de ser dita no interrogatório? Algo que ainda queria expressar? O que na sua opinião não foi perguntado?
Kiko: Eu realmente acho que faltaram muitas perguntas. Não consegui dizer tudo o que queria dizer, mas falei o principal. Eu tenho responsabilidade, mas não quis e nem aceitei que as pessoas viessem a falecer dentro do lugar onde elas mais se divertiam, onde eram felizes. Nunca imaginei. Mas quem deveria ter agido e se omitiu, esses tem que ser processados.
A Razão: Como acha que o Kiko será lembrado ?
Kiko: Se houver justiça nesse mundo, como aquele que arrastou para o processo criminal todos aqueles poderosos que se esconderam atrás dos seus cargos e se protegeram jogando a culpa toda para os quatro mais fracos.
A Razão: Como gostaria que o Kiko fosse lembrado?
Kiko: Como uma pessoa que também morreu dentro da Kiss. Pra viver desse jeito, o melhor é que eu tivesse morrido lá dentro.
A Razão: Qual lição se tira da tragédia?
Kiko: A principal é que realmente nunca estamos seguros de nada e tudo pode acontecer. Quem te disse que tu estava certo num dia, pode te apontar o dedo e te jogar na cadeia ali na frente.
A Razão: O que o senhor diria para os familiares das vítimas, caso ficasse frente a frente com eles?
Kiko: Já fiquei na frente de um pai, de uma mãe, de um irmão, de um amigo e até mesmo de uma sobrevivente e eu só pude dar o que existe de mais sincero que é um abraço forte, longo e doloroso. Não precisei dar explicações, até porque não tem como dar explicação para quem perdeu um filho.”
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