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NEURA – por Pylla Kroth

Toda banda de rock dos anos 80 tinha um sonho: ter uma Kombi. Isso seria a solução para as andanças e “tocatinas” estrada afora. Tirava-se os bancos e ainda sobrava mais sete lugares, para o quinteto e mais o chefe (Produtor). As Topics ou Vans eram utopia e quando estas apareceram os preços das Kombis baixaram bastante, devido a concorrência, e então era chegada a oportunidade de fazer a aquisição tão sonhada.

Depois de muito procurar, encontramos a danada estacionada na Avenida Presidente Vargas com um cartaz dizendo a palavra mágica “Vende-se”. Fiz plantão até aparecer o dono, que de pronto ao chegar foi tratando de dar as condições do elefante branco. Segundo ele, não tinha defeito algum, estava “filé”. Fiz a proposta oferecendo uma soma que a banda teria em caixa mais minha moto e… “negócio fechado”.

Era início do verão e planejávamos ir para o litoral, passando de praia em praia, realizando apresentações. Mas na verdade logo resolvemos que ir pra Santa Catarina direto ao invés de começar pelas praias gaúchas, seria o melhor. Pois os “hermanos” argentinos estavam por lá e o mercado era mais promissor. Tínhamos mais um show na agenda para cumprir antes de partir para as praias, no ginásio de Agudo, e iríamos aproveitar para testar a danada.

Logo nesta primeira viagem começou a engasgar, tossir e quase não conseguimos voltar! O jeito foi visitar o mecânico que logo desenganou o motor. Putz! E lá fomos nós para mais um show fechado às pressas para custear reforma do motor. Um dia antes da viagem programada, o mecânico avisou que estava pronta, e enfim poderíamos fazer a desejada viagem.

Eram 18h e a banda tinha planos de sair naquela madrugada mesmo. Da oficina para o estúdio de ensaio. Carregamos com equipamentos até as goelas como dizíamos. Às cinco horas da manhã colocamos o pé na estrada. Quando o dia amanheceu já estávamos subindo a serrinha no morro do Botucaraí com o sol batendo na cara. Na metade da subida, o motor começou enfraquecer e aquecer. Eu era o único da banda com habilitação pra pilotar. Parei e esperamos dar uma esfriada e seguimos viagem. No primeiro posto de gasolina adiante pedimos ao frentista pra verificar o óleo na vareta. Foi aquela decepção: um risquinho apenas.

E esse foi o primeiro litro de óleo no motor dos onze (!) que seriam consumidos até a Lagoa da conceição em Florianópolis, numa viagem que durou espantosas 20 horas! Já na Freeway havia uma Blitz, o guarda sinalizou pra encostar, paramos, ele se aproximou e ao olhar pra dentro e avistar aquele bando de cabeludos sem camisa, balançou a cabeça e nem pediu documentos, “Estão indo tocar? É uma Banda de Rock? Sigam em frente que por hoje já me incomodei o suficiente! Boa viagem!”.

Próximo a Laguna o motorista aqui, já cansado, resolveu entregar o volante pro novato, que embora não possuía habilitação dirigia muito bem. Foram 30 minutos, eu com um olho aberto e o outro fechado, de repente de canto de olho, vejo uma roda ultrapassar a Kombi pela direita, logo gritei: “para que soltou uma roda!” O motorista novato obedeceu e foi lentamente para o acostamento e, pasmem, a danada da Kombi andou uns 50 metros com apenas três rodas! Logo que estava parando, baixou a frente do lado direito, arrastando-se por uns cinco metros apenas. Saltamos pra fora. Que sorte que o incidente acontecera no plano, antes da subida que dava acesso a ponte de Laguna. E agora? Ninguém parava pra prestar socorro, o ponto da estrada era perigoso.

Colocamos o triângulo e galhos de árvores para alertar os carros que passavam. Logo dois dos integrantes da banda se prontificaram a ir “na pernada” buscar auxílio em Laguna. Ficamos os outros aguardando na estrada. Começou anoitecer, ligamos o rádio e na Voz do Brasil veio o anúncio “os EUA invadiram o Golfo Pérsico”. Nós invadimos a capoeira do acostamento. A meninada agiu rápido e, em menos de duas horas, voltaram com ajuda de um mecânico, que encontraram tomando uma caninha do outro lado da ponte e que logo tratou de trazer um eixo de um ferro velho e sua caixa de ferramentas para nos tirar da situação complicada.

Entre um trago e outro de cana, em meia hora o elefante branco estava com as quatro patas em dia. Seguimos viagem. Assumi novamente a boleia. Mais meia hora de estrada e um silêncio total: a galera caiu no sono, dormiram duas horas e nada de aparecerem as luzes da grande Florianópolis. Isso foi acontecer 11 horas da noite. Bueno, agora é só descer para Lagoa da Conceição. Era 1h da manhã quando enfim chegamos. Ufa! Deitei na cama e não teve jeito de dormir tamanho era o cansaço. Levantei, tracei um copo de uísque num “golito” e só então apaguei.

No primeiro dia já tínhamos show agendado. Chegamos eufóricos na estreia. Depois de tamanho sofrimento, o jeito era se divertir.

Começou o espetáculo e logo na primeira pausa da apresentação tratei de fazer a apresentação do grupo: “Boa noite Santa Catarina! Somos uma banda da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do sul!”. Foi quando um louco da plateia levantou e gritou: “Tudo bem magrão! Ninguém é perfeito!”. Foi o que bastou pra um bom início de temporada. O público caiu na gargalhada e no Rock.

Mas a Kombi não andava bem mesmo. A cada saidinha era um problema. Roncava mas ia perdendo a força definitivamente. Certa tarde, olhei para o caracol que dava acesso pra Lagoa e pensei comigo mesmo: “Essa “Neura” (que era como havíamos apelidado a Kombi em razão de todas peripécias que nos fizera passar até ali) não vai ter força para voltar pra casa. Vou sozinho fazer o teste antes de nossa partida de volta”. Pois não deu outra: na segunda curva do caracol deu uma explosão fantástica, parecia um rojão no motor. Partiu ao meio. Deu para se arrastar até o mecânico, que tratou de desenganar o motor e ainda falar mal do colega que havia feito a reforma.

Fizemos depois disso mais três shows para arrumar dinheiro para pagar outro motor adquirido em um ferro velho. Chegamos a conclusão que seria arriscado colocar todos, mais o equipamento dentro para o retorno. A Neura não iria aguentar. O jeito era mandar alguns componentes para rodoviária tomar o ônibus para Santa Maria e eu e o produtor sozinhos iríamos encarar a viagem de volta. E assim foi feito. Até Porto Alegre ela até que se comportou mais ou menos, mas da capital para cá a coisa começou a ficar feia, motor perdendo a força e, lá por Cachoeira já estava se arrastando e falhando miseravelmente.

Preocupados com o motor, nem nos demos conta de ficar de olho no ponteiro do combustível, álcool, pois o novo velho motor adquirido agora não era mais a gasolina! Aquele era um tempo em que todos os postos de combustíveis fechavam às 18 horas.

Assim, na próxima parada para abastecer perdemos a hora e as bombas já estavam lacradas. Ficamos sem combustível! Foi quando um sujeito que estava bebericando um trago no bolicho do posto, ainda aberto, nos sugeriu: “Daqui até Santa Maria são 60km. Se ainda tem um pouco de álcool no tanque o jeito é comprar algumas garrafas de cana e botar no tanque!”. Assim fizemos. Foram oito garrafas! Voltamos pra estrada e, não demorou muito, a Neura se acordou como nunca tinha estado na viagem. Parecia um turbo. Eita, cana da boa esta! Decerto era o que precisava para acalmar a neura! (risos) Logo avistamos a BASM. Foi aquela alegria. Estacionamos cansados na rua do estúdio e nem tivemos forças pra manobrar na garagem. ‘Bora dormir, Amanhã descarregaremos!”.

No dia seguinte, fizemos a lida e liguei a Neura para ir até o posto abastecer adequadamente. Belisquei e ela pegou, andei 50 metros, foi aquela explosão novamente, desta vez com direito a fogo. Saltei para fora, logo parou um carro na Fernando Ferrari e o motorista com o extintor em punho tratou de apagar o fogo, pois a danada, nem tínhamos percebido, nem extintor tinha!

Como a compra fora às pressas tínhamos apenas uma procuração do cara que nos vendeu, e este nos prometera a documentação completa assim que voltássemos de viagem. Procurei o danado do picareta por semanas e, quando finalmente o encontrei, veio com uma conversa de que quando comprara a Neura de uma senhora e esta ficara de entregar a ele os documentos e nunca o fizera, pois viera falecer pouco depois que ele havia feito transação do veículo conosco. Sem documentos ou maneira de desenrolar a situação da Neura, só nos restou vendê-la para um colono do interior de São Pedro do Sul, que topou a compra sem documentação, pois lá no fundão onde iria usá-la na lida não havia fiscalização. Sorte.

Sorte mesmo, porque andamos 1.500km sem problemas com a Patrulha Rodoviária. Sorte pela aventura completada. Sorte pela felicidade de termos vividos essas histórias que ficaram guardadas em nossas memórias. Acreditem. Isso é sorte. Neura era a Kombi e não nós, jovens aventureiros. Fomos artífices de nossa sorte. Fomos felizes, sabíamos e saberemos até nossa velhice. Que o tempo não apague minhas lembranças!

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