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É CINEMA. Bianca Zasso e, em tempo de quarentena, um filme tailandês pra lá de apropriado, pode apostar!

Adeus, ano velho!

Por BIANCA ZASSO (*)

Estamos todos rachados. Não apenas pelas dificuldades emocionais e econômicas que essa pandemia está causando, mas porque 2020 está correndo e nós estamos reescrevendo e até rasgando páginas das nossas agendas e calendários. Mais no sentido figurado do que no real, mas nem por isso menos doloroso.

Não bastasse a água e o sabão mais frequentes em nossos corpos e o álcool-gel tornando-se item de primeira necessidade, também estamos aproveitando o isolamento (coisa de privilegiados, não tenho dúvidas) para limpar outros cantos.

Tem gente descobrindo que tem mais roupas do que deveria no armário, cômodos mal aproveitados pela casa, “amigos” demais nas redes sociais. De vassoura em punho, vamos fazendo a faxina. E é sobre a dor de faxinar as próprias memórias que trata uma das agridoces surpresas da mais popular plataforma de streaming do mundo.

Happy Old Year, roteirizado e dirigido pelo tailandês Nawapol Thamrongrattanarit, a produção de 2019 não está rendendo debates como a espanhola O Poço, também disponível na Netflix, mas também conversa com o momento atual. Com mais sutileza e talento, diga-se de passagem.

A trama acompanha um momento divisor de águas na vida da jovem Jean (Chutimon Chuengcharoensukying), uma apaixonada pelo estilo minimalista que prepara-se para transformar a casa atulhada de coisas, que divide com a mãe e o irmão mais novo, em um espaço com muito branco e o mínimo de objetos.

Quem pensou na filosofia espalhada pelo mundo pela japonesa Marie Kondo, acertou na mosca. A especialista em organização aparece no filme apresentando sua série de sucesso, onde modifica a vida das pessoas por meio do desapego. Mas será que a tal revolução prometida por Kondo e que orienta a protagonista de Happy Old Year seria a solução para nossos apertos no peito? Menos uma xícara em casa nos faria mais felizes?

É a pergunta que paira entre os espectadores do filme desde a cena inicial, que já deixa claro que o diretor não gosta do óbvio e convida quem está assistindo a pensar e construir o significado do plano sem pressa.

Objetiva, Jean inicia sua jornada de desprendimento dos bens materiais de forma invejável e organizada. A atmosfera modifica quando papéis, discos e fotografias dotadas de significado começam a surgir na montanha de objetos. Jogar fora algo que nos lembra alguém resolveria nossas mágoas? Não observar mais algo na estante nos faria esquecer a dor de uma perda?

É na odisseia travada por Jean na devolução de presentes que ganhou ao longo de seus 30 anos que o véu que encobre seu passado vai sumindo diante de quem assiste ao filme. Descobrimos um ex-namorado, Aim (Sunny Suwanmethanon), que ainda balança os seus desejos. Um pai que partiu e que a mãe insiste em manter presente na forma de um piano que ninguém mais toca.

O ritmo tranquilo dos diálogos e sequências, só quebrado na ótima cena do jantar em família, inebria ao ponto de, ao acompanhar a história, nos pegarmos pensando sobre os nossos próprios objetos, as coisas que adornam nossas caixas e casas. Jean queixa-se repetidas vezes de cansaço e essas falas são dúbias: a reforma da casa a cansa, mas também refletem que, mesmo enchendo um saco de lixo atrás do outro, há algo que ela ainda não consegue jogar fora.

O cinema tailandês, mais conhecido do grande público no Brasil por suas produções que flertam com o fantástico, como os ótimos trabalhos de Apichatpong Weerasethakul, e os filmes de ação protagonizados por Tony Jaa, abre uma porta importante ao disponibilizar suas produções dramáticas mais recentes em uma vitrine importante como é a Netflix.

Não que uma revolução esteja a caminho, com as pessoas apaixonadas pelas produções do país de uma hora para outra. Mas, quem sabe, quando pudermos voltar às mesas dos bares para jogar conversa fora, possamos discutir os dramas de Jean e outros personagens que vivem longe daqui, mas se fazem perto pelo fato de serem humanos, demasiado humanos. Como cada um de nós.

Que Happy Old Year seja o início de uma epidemia que nos fará menos solitários. E também menos dependentes de Hollywood para nossas idas ao cinema.

P.S. Queridos leitores,

Sei que vocês não são muitos, mas sinceridade e lealdade nunca faltou a nenhum de vocês com esta coluna. Por conta da proximidade da chegada de um novo habitante neste planeta, que durante estes últimos meses deu chutes e pontapés enquanto eu preparava cada um dos textos publicados aqui neste site quinzenalmente, farei uma pausa.

Breve, mas que soará como uma eternidade para alguém que, mais que escrever para viver, vive cada dia pensando em novas formas de colocar as palavras e passar a mensagem da melhor forma possível, sempre com o objetivo de tornar a experiência cinematográfica ainda mais intensa.

Em tempos de quarentena, onde muitos colegas críticos e também outros trabalhadores do cinema se encontram em momento de reinvenção, com lançamentos cancelados e cinemas fechados, precisamos da arte mais do que nunca. E se ela existe porque a vida não basta, façamos dela ponto crucial da nossa existência, assim como a ciência e o afeto. O ódio, deixemos para quem tem a alma pequena demais para administrar emoções que machucam, mas também libertam.

Até mais! E fiquem em casa!

Bjus da Bia

(*) Bianca Zassonascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Suas opiniões e críticas exclusivas estão disponíveis às quintas-feiras.

 

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Um Comentário

  1. Industria do audiovisual vai tomar um tranco .Quero ver o que acontece com a indústria de jogos.
    Quanto ao post scriptum, tanti auguri e saúde. Mudanças e menos tempo virão depois, mas a causa é nobre.
    Quero ver o que fará o editor, 50% das colunistas do site de licença.

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