ComportamentoCrônica

CRÔNICA. Pylla Kroth, quem diria, já foi auxiliar de protético. E até conheceu clientes muuuito especiais!

Terezona

Por PYLLA KROTH (*)

Anos atrás havia vários nomes para definir as casas de prostituição, quase sempre pejorativos, e então eram conhecidas por nomenclaturas como “puteiro”, “zona” (relativo a “zona do meretrício”), “bordel”, “boite”, “prostíbulo”, “bataclã”, “rendez”, “cabaré” (que os mais moderninhos chamavam de “cabaret”, termo originário do francês) e a muito popular “casa da luz vermelha”. Alguns desses nomes inclusive ainda são usados atualmente para se referir a esta classe de estabelecimento onde realiza-se o comércio do sexo. Na época passada eles eram comandados por alguns cafetões ou cafetinas, como eram chamados os agenciadores. Geralmente localizavam-se em regiões da cidade afastadas do centro, quase sempre em áreas não muito bem vistas pela sociedade, como a periferia e bairros mais pobres e, em alguns casos, até mesmo em regiões interioranas ou à beira de estradas ou linhas férreas, e assim praticava-se ali o que alguns definem como a “mais antiga das profissões”.

Com o passar do tempo as coisas foram mudando, naturalmente, até chegarmos na atualidade, onde o proprietário ou proprietária destes locais são elegantemente chamados de “empresários da noite”, que gerem “casas de espetáculos eróticos” ou “clubes noturnos” ou “uísquerias” e, claro, desde 2002 a prostituição no Brasil é reconhecida legalmente como uma profissão pelo próprio Ministério do Trabalho, desde que observadas algumas regras como ser praticada apenas por maiores de idade, por exemplo.

Por esses locais passam diversos shows e comercializa-se legalmente o sexo. Alguns indivíduos da referida profissão conseguem não apenas sobreviver, mas até mesmo enriquecer. Esse nicho empresarial movimenta tantos milhões de cifras quanto qualquer ramo forte do entretenimento, talvez até mais. Dados de 2017, publicados numa revista de grande circulação no país, estimavam que apenas na cidade de São Paulo o mercado do sexo teve um faturamento líquido de 586 milhões em doze meses.

Vou deixar bem claro que não tenho nada contra, cada um dá o jeito que achar melhor para ganhar a vida, apesar de eu ter nascido e crescido em uma cidade interiorana onde a mentalidade vigente, ao menos na minha época de garoto, fosse extremamente preconceituosa em relação à prostituição e quem a agenciava e principalmente praticava. Exceto contra os freqüentadores, é óbvio, sempre amparados em alguns casos pelo “isso é coisa de homem!”.

Aliás, uma prática comum no interior no passado era a iniciação sexual dos meninos se dar em bordéis. Quando “chegava na idade”, alguns pais mesmo levavam os meninos para “conhecerem mulher” e lembro-me de vários amigos que viveram nos prostíbulos sua “primeira vez”. E, como ouvi certa vez um amigo meu dizer para o outro, após tal experiência, ainda novato: “a coisa é cabeluda mesmo!” e todo mundo sabe que na década de 70 mulher não tinha o hábito da depilação, daí o nome. Fato é que as prostitutas na sociedade eram muito desprezadas e dizia-se que mulheres de “famílias boas” jamais iriam cair num “bordel”. Era assim que assimilava e caminhava a humanidade naqueles tempos. E confesso que, naqueles fundões, além do mais, nunca vi uma mulher bonita e escultural fazer parte do time do bordel, o qual lá naquela cidadezinha do interior era conhecido popularmente como “a chacrinha”. Mas, claro, dava pra saber que elas eram daquela área da profissão pelas vestimentas e pinturas no rosto, chamativas, e o modo de portar-se e principalmente pela forma como eram olhadas com desdém pelas “pessoas de bem”.

Enfim… eu, garoto de rodoviária, sempre na área de estafete das lojinhas que circundavam a chegada e saída dos ônibus, freqüentemente via quando desembarcavam do ônibus algumas destas “mulheres da vida”, vindas lá das bandas da “chacrinha”. Este local, aliás, está na ativa até hoje, situado entre as cidades de Tapera e Espumoso.

Havia recentemente se instalado um moderno consultório odontológico de um dentista recém-chegado na cidade. Aquele novo dentista substituíra o antigo “prático”, que já estava velhinho, e tinha nos fundos da clínica sua própria fábrica de próteses onde fazia “chapas”, dentaduras, dentes postiços de porcelana, pontes, pivôs, etc. E eu já andava bem interessado na arte de aprender confeccionar as ditas cujas, o trabalho que tinha o curioso nome, para mim, de “protético”.

Logo eu fiz amizade com o recém chegado, que por ali me dava passagem livre, até que afinal acabei me tornando uma espécie de secretário-mirim deste que atualmente é um velho amigo. Aliás, se estou contando hoje esta história é por que sou amigo da irmã dele que vive aqui por essas plagas e tivemos o privilégio de nos encontrarmos  na semana passada e darmos risadas lembrando do passado ainda presente em nossas memórias!

Não consigo descrever em termos matemáticos o quanto me esforcei na tentativa de obter sucesso como aprendiz de protético. Mas não teve jeito. Certo dia, porém, ele me chamou no reservado e me falou que, depois de me observar algum tempo, tivera uma idéia de como aproveitar melhor minhas habilidades, já que não estava tendo êxito nesta área. “Tu vais fazer a entrega de algumas dentaduras para mim lá na “Chacrinha”! Sabes como é… essas danadas vieram aqui, tiraram as medidas, mandaram fazer as dentaduras e nunca mais voltaram para retirar e muito menos pagar. Não posso perder meu serviço, então tu vais fazer as entregas e receber o pagamento no ato. Pegue a ficha das clientes ali no fichário, vou escrever o nome delas e tu vais lá entregar. Porém este trabalho deverá ser feito durante o dia, à tarde, pois depois que escurecer o comissário de menor aparece por lá fiscalizar e eu não quero ser o responsável se eles te pegarem por lá”.

Pronto. Assim foi. Peguei o ônibus e me mandei numa daquelas tardes com as “mercadorias” para fazer a entrega. Cheguei à dita “chacrinha” lá pela meia tarde. O ônibus voltaria na tardinha. Era fazer o que tinha pra fazer e “capar o gato” de volta. O combinado: “se conseguires a façanha de entregar e receber o valor, te darei metade do que obtiver pelas dentaduras!” e isto foi o que me fez topar na hora. Aparentemente era uma tarefa fácil, “barbada”, pois ganharia uma boa grana e mataria de vez minha curiosidade infantil de ver de perto aquela famosa “chacrinha” de que tanto ouvia as pessoas cochicharem a respeito.

A casa era aparentemente bem comum, até um pouco decepcionante à primeira vista. Bati na porta por várias vezes até finalmente  aparecer uma mulher descabelada e nem um pouco bonita, que para mim era a cara da bruxa má. Coisa de filme de terror. “O que tu queres aqui menino? Aqui só entram homens adultos, bateu na porta errada!”, foi logo dizendo. E eu tratei de me explicar imediatamente: “Calma, senhora, vim a mando do dentista fazer umas entregas para as moças que trabalham ai!”. Ela pensou um pouco e pediu que eu desse a volta na casa até a porta dos fundos. Obedeci e quando entrei finalmente lá vi pela primeira vez a famosa luz negra e a pista de dança, não muito diferente de um bar comum tradicional nos dias de hoje. A velha rapidamente foi até um corredor e gritou pelas “obreiras”. Apenas uma se apresentou, dizendo que as outras tinham tomado o ônibus do inicio da tarde e teriam ido até a cidade vizinha a alguns quilômetros dali. Perguntei qual era seu nome e ela me respondeu a meia boca com aquela voz meio amarfanhada pela falta de dentes: Jenifer! Justamente o nome de uma delas. “Tenho aqui na sacola algo que possa lhe interessar”, disse eu, e desembrulhei a ponte com exatamente seus quatro dentes frontais. Seus olhos brilharam como ouro! Ela em um enorme sorriso banguela logo pegou e foi correndo ao banheiro provar. Na mosca! Voltou com o sorriso mais rico e sincero que meus olhos já viram até hoje, tamanha era sua felicidade com os dentes novos. A cafetina não se conteve e colocou as duas mãos no rosto e gritou: “Menina do céu! Que sorriso mais lindo!” Solícito, fiz o que tinha sido recomendado pelo dentista, perguntei se não estava apertada em algum ponto, etc, ao que ela me respondeu que estava perfeita, nem um ajuste a mais nem menos. Aí veio mais trelê-lê: “Quanto devo? Tudo isso? Meu Deus… De onde vou tirar essa grana?” Estava nisso ainda quando ouvimos um barulho de uma potente camioneta F-1000 estacionando na frente. “Corre, menino, ninguém pode lhe ver aqui!”, disse ela meio assustada. E eu, firme negociante, repliquei: “Então tira a ponte e me devolve ou me paga.” Em segundos ela me respondeu: “Te faço uma proposta: deixa eu atender meu amante usando a ponte, se ele gostar peço pra que ele me pague”. Brique feito, concordei e fui me esconder num canto do bar atrás de uns engradados de bebida presenciar a cena. O velho entrou e ela lhe recebeu com seu novo sorriso. Olha.. me faltam palavras pra descrever a incredulidade,  amor e compaixão da cena. Cena de novela de horário nobre. Leo Canhoto & Robertinho na trilha sonora, em seguida Duduca e Dalvan. Algumas cervejas e beijos infindáveis se sucederam antes de rumarem para o “cantinho do amor”, corredor afora. Saí de trás do balcão e a Dona Tereza (este era o nome da velha cafetina que me atendera) deu uma baita “gaitada” de felicidade e me convidou para sentar e tomar uma “Pepsi Cola”, dizendo que em meia hora teríamos a resposta.

Dito e feito! Acabou que saí de lá com a missão cumprida e com o desejo de retornar, agora com o apoio da cafetina que me ajudaria, pois o sucesso da entrega e arrecadação do pagamento foi total. Por ali voltei e de todas chapas e pontes postiças que levei ao longo de minha carreira de entregador do dentista e protético, apenas uma não consegui obter êxito, tendo que tirar a dita da boca da profissional bêbada, aos vômitos.

Anos se passaram e eu estava na estrada pegando carona, quando, no dedão, parei um carro. “Vai pra onde, moço?” me perguntou um rapaz forte, juntamente com uma senhora já bem idosa. “Vou pras bandas de Santa Maria da Boca do Monte”. “Embarca aqui então e vamos simbora!”. Andamos alguns quilômetros e a velha se vira e me pergunta: “ Por um acaso tu nunca foste entregador de dentes?” Pensei por instantes, olhei bem em seus olhos e junto começamos dar risadas. Era a Dona Tereza, a cafetina da “chacrinha”. O motorista era seu filho e até hoje somos amigos.

Neste final de semana, em visita a minha cidade de infância, soube que ela faleceu há algum tempo e foi enterrada em São Luiz Gonzaga. Casualmente eu havia lembrado dela na conversa com minha amiga irmã do dentista por aqui. Segundo seu filho, meu amigo aqui na rede social, seu último pedido foi que fosse escrito em seu jazigo: “Aqui jaz a Cafetina Terezona, mulher da felicidade alheia!”

Pois descanse em paz, Terezona! Fizeste muita gente feliz com sua digna profissão. Nunca aceitou ser chamada de empresária. Se autointitulava vendedora de prazeres alheios. Nunca misturou amor e sexo. Dizia que o Amor era coisa mais profunda e durável, enquanto que sexo era coisa momentânea, que ela apenas dava corda nos velhos relógios.

(*) PYLLA KROTH é considerado dinossauro do Rock de Santa Maria e um ícone local do gênero no qual está há mais de 35anos, desde a Banda Thanos, que foi a primeira do gênero heavy metal na cidade, no início dos anos 80. O grande marco da carreira de Pylla foi sua atuação como vocalista da Banda Fuga, de 1987 a 1996. Atualmente, sua banda é a Pylla C14. Pylla Kroth escreve às quartas feiras no site.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: A ilustração que você vê aqui é uma reprodução de internet.

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Um Comentário

  1. Pois o Pylla até mesmo já morou na zona.
    Explico: foi meu vizinho em um prédio na Dr. Pantaleão onde, muito antigamente, se localizavam vários cabarés. Nos tempos áureos, dizem, muitos artistas se apresentavam nos estabelecimentos, inclusive vindos da distante Buenos Aires. O último resquício foi o nome mantido no bar/armazém da esquina com a Ângelo Uglione, chamado Balalayka, que durou até a década de 1990 e depois, infelizmente, mudou para Da Ladeira.

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