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CRÔNICA. Orlando Fonseca, as flores, o jardim e a analogia necessária a um tempo, sim, de passividade

Flores de verdade

Por ORLANDO FONSECA (*)

Na beira do caminho, sem Maiakovski. Eu sou o mais velho de todos e o mais alto. É a primeira noite, e eu me aproximo com todo o cuidado. Entro no jardim e planto uma flor. Eles não dizem nada. Na segunda noite, meu irmão, um pouco mais novo e mais baixo também, sem tentar se esconder entra no jardim, cuidando para não pisar nas flores e afaga o cão. Mas eles continuam a não dizer nada. Até que um dia, nosso irmão mais novo, uma criança ainda, entra sozinho na casa deles, acende a luz e, conhecendo a indiferença deles, empresta-lhes a voz. Mas tudo o que têm a dizer é: “o que você está fazendo aqui?” E, diante das verdades que ouvem daquela boca infantil e também porque não querem ouvir ou entender, limitam-se a dizer: “é mentira!”

O texto acima é uma paródia que fiz a partir de um poema de Eduardo Alves da Costa. Durante muitos anos, a galera pensava se tratar de uma tradução de alguma poesia de Maiakovski. Essa minha versão me ocorreu a propósito deste tempo de tanta intolerância, época de promessas feitas por quem não pode dar garantia nenhuma e de gente que esconde a verdade em defesa de seus próprios interesses. Dias de escolhas difíceis para um cronista, pois sobre este tempo ou se fica calado ou diz-se algo que pode ferir alguém.

Por coincidência, recebi mensagens que citavam o mesmo trecho do poema do Eduardo que fala: “Na primeira noite/ eles se aproximam/ e roubam uma flor/ do nosso jardim./ E não dizemos nada.” Minha resposta nesta paródia quer dizer que de mim não estão roubando nada. Eu é que não devo entrar no jardim dos outros e roubar o que quer que seja. Sendo do outro, eu apenas devo observar sem a tentação de roubar.

Tenho índole pacífica e não transformo em ofensa o que diz respeito aos outros, portanto, não me sinto incomodado com o que não me ofende. Me ofendem a falta de justiça, o preconceito ou a indiferença, comigo ou com os meus semelhantes. Da mesma forma, não me ofende a felicidade, ou a busca da felicidade, de ninguém.

E esse é o meu humanismo, algo que se constrói ao longo da vida, e, por isso mesmo, que tende a se aprimorar com o tempo. É a minha verdade, a propósito da declaração de um tenente que atuou na repressão à Guerrilha do Araguaia: “não colaboro com o inimigo”.

Em tempos de paz, não creio que o seu inimigo sejam seus conterrâneos, então me pergunto: o inimigo dele seria a verdade? Enquanto não se constitui uma Comissão da Mentira (que também poderá se chamar CPI das Fake News), prefiro acreditar na construção de um país justo, para todos os brasileiros, mesmo que a minha entrada no jardim seja confundida com a chegada dos invasores.

(*) ORLANDO FONSECA é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

OBSERVAÇÃO: A foto que ilustra esta crônica é uma reprodução da internet.A imagem é gratuita e, no original, pode ser encontrada AQUI.

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