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ARTIGO. Luciano do Monte Ribas, a situação do Chile e o que ela ensina a quem fomenta as desigualdades

Individualismo, uma doença social

Por LUCIANO DO MONTE RIBAS (*)

Quem se aventurar a abrir minha dissertação de mestrado encontrará na página de rosto uma frase do genial escritor José Saramago, que uso como uma espécie de “mantra”.

Diz o mestre português que “só se nos detivermos a pensar nas pequenas coisas chegaremos a compreender as grandes”, numa clara manifestação da complexa simplicidade com a qual ele via o mundo, estando nela a essência da sabedoria que Saramago acionava para escrever sobre a humanidade.

Sobre tal frase, se a chamo de mantra é porque, para mim, ela sintetiza a ideia de que não bastam grandes projetos ou objetivos transcendentes se não tivermos, no dia a dia, a mesma disposição para sermos seres humanos melhores. E melhores aqui não possui o sentido de “mais eficientes”, tão em voga nesses dias em que tudo é resultado, monetização e performance, mas de pessoas mais humanas. O que nos leva, por contraste, ao extremo oposto, o individualismo.

Além das ideologias excludentes e preconceituosas que se escondem sob a máscara de um “liberalismo” que causaria asco aos iluministas (e que alimentam essa onda de desagregação social que atinge boa parte do mundo), existe também uma incapacidade de agir no quotidiano com a consciência de que vivemos em sociedade. Há, especialmente nas classes média-alta e alta, um comportamento egocêntrico que, até mesmo inconscientemente, absolutiza o indivíduo e transforma as relações pessoais em jogo. Mesmo indivíduos capazes de atos de generosidade naquilo que consideram “importante”, nas suas relações mais imediatas são guiados por aquilo que lhes dá prazer, vantagem ou lucro, sem sequer pensarem no impacto de seus atos sobre os outros. É a tradução no micro do que os think tanks do capital financeiro impõem no macro.

Porém, acredito que toda essa incapacidade de dividir ao menos um mínimo de tudo o que concentram custará, em algum momento, muito caro aos poucos que possuem muito.

Costumo dizer que toda a pressão social causada pela concentração de riquezas tem muito mais chance de acabar em barbárie do que em revolução. E aí, meus caros e minhas caras, não haverá cercas elétricas, muros, cabines de vigilância, câmeras, armas ou seguranças que bastem para segurar uma massa que perdeu a paciência e, com ela, a racionalidade.

O que nos leva ao “modelo” de sucesso da selvageria neoliberal, o Chile. Parece que por lá o povo cansou de apenas assistir um crescimento econômico que não se transforma em desenvolvimento, mas aguça a concentração de renda e os privilégios para os “de cima”.

Estive em Santiago do Chile em 2018 e fiquei impressionado com o custo de vida, sobretudo da comida. Dos lugares do mundo pelos quais andei foi onde mais vi gente vendendo “coisas de comer” informalmente pelas ruas, em completa precariedade, o que decididamente não combina com a tal prosperidade que o guru do néscio diz ter ajudado a construir.

Na verdade, o modelo chileno não resiste a um olhar mais atento – a não ser que o observador ache bonito um lugar onde há gente tendo que escolher entre lavar a roupa ou tomar banho devido ao alto custo da água privatizada.

Transformado por uma das ditaduras mais cruéis de seu tempo em laboratório do neoliberalismo, as ruas chilenas demonstram, por esses dias, como pode ser alto o preço que uma sociedade pode pagar por promover como modelo de sociedade uma versão light da “guerra de todos contra todos”. Apenas em mortos, no momento em que termino esse texto esse custo já conta dezenove vítimas.

* LUCIANO DO MONTE RIBAS é designer gráfico, graduado em Desenho Industrial / Programação Visual e mestre em Artes Visuais, ambos pela UFSM. É um dos coordenadores do Santa Maria Vídeo e Cinema e já exerceu diversas funções, tanto na iniciativa privada quanto na gestão pública.

Para segui-lo nas redes sociais: facebook.com/domonteribas – instagram.com/monteribas.

FOTO: Vai e vem de pessoas na Ponte Vecchio, em Florença.

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3 Comentários

  1. Aviso aos navegantes: o mundo não precisa da aprovação moral dos vermelhinhos. Ficar mais vermelhinho todo dia (ou seja, adesão a ideologia dos mesmos) não torna ninguém ‘um ser humano melhor’.
    Alás! Para todo terraplanista existe um imbecil que o critica para se sentir mais inteligente (talvez por falta de alternativa). Enquanto isto o SUS joga dinheiro em homeopatia cuja base cientifica é altamente duvidosa, coisa de burocrata da OMS promovendo a pacificação social. Sem falar nos ‘conhecimentos tradicionais’, chazinhos e pajelanças.
    Problema do Chile não tem nada a ver com ‘liberalismo’. Para quem não prestou atenção o Chile é uma tripa de terra expremida entre os Andes e o Pacifico. Menos de dois por cento da terra é arável, produz comida. Meio por cento adicional é comprometido com culturas perenes, ou seja, uva. Como o Japão consomem muitos frutos do mar. Pais importa muito da energia que consome (petróleo principalmente e derivados), praticamente não tem industrias, Receita do pais depende principalmente do cobre. Já andou perto de 9 dólares o quilo em 2010, esta perto de 5 dólares, pouco mais que a metade.
    Chile, para quem gosta de estatísticas, tem o mais alto índice de desenvolvimento humano (ONU-2017) da América Latina. Inclusive tem índice 8,5% superior ao de Cuba. Vão dizer agora que Cuba não é uma ditadura? Ou que não tem uma ‘sociedade fraterna’?

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