Setembrino
Por ORLANDO FONSECA (*)
“Levei 52 anos para subir duas quadras.” Esta frase ouvi do músico, grande figura da cultura de nossa cidade, Maestro Setembrino. Tive a felicidade (aliás, esta palavra também encerra uma lenda urbana, da qual vou tratar mais adiante) de conviver em muitas ocasiões com a música do saxofonista, e com a memória de sua passagem por Santa Maria.
Dele ouvi não apenas as melodias tocadas magistralmente, mas também histórias, algumas engraçadas, outras que testemunham a sua perseverança em um mundo hostil sob diversos aspectos. Encantou-se o maestro, como diria outro dos meus amigos encantados, mas a nossa cidade deve fazer o maior esforço para reverenciar um artista notável, que legou à Cidade a música de seu Hino Oficial.
As primeiras oportunidades que tive de conversar mais próximo, com o Setembrino, deram-se em um lugar que também me traz outras grandes recordações de momentos, eu diria hoje, históricos. O Maucio’s Bar.
Para algumas pessoas que não conheceram o referido ponto cultural informal, da Santa Maria na virada do século, pode parecer uma lenda urbana que um artista, cartunista, professor da Universidade na área do Design, tivesse em sua casa um Bar onde reunisse seus amigos.
Mas este lugar existiu, junto à residência do Mario Lucio Bonotto, o Máucio para os íntimos, ali no finalzinho da Serafim Valandro. Reuniam-se naquele paraíso privé, artistas, intelectuais, músicos, entre os quais o maestro, reverenciado e querido por todos.
Depois, por várias ocasiões, tive a oportunidade de compartilhar uma mesa com o Setembrino, no finado Ponto de Cinema – outro espaço mágico de nossa cidade. Em algumas dessas ocasiões, estava presente outro apressado desta vida, o poeta Humberto Gabbi Zanatta, parceiro e um dos maiores nomes da poesia santa-mariense. Chegamos inclusive, o Zanatta e eu, a esboçar um projeto de livro de memórias, diante das peculiaridades do que ouvíamos naquelas tertúlias.
Foi numa dessas vezes em que o músico narrava os seus primeiros anos na cidade – algumas impublicáveis nesse espaço – que ouvi a frase citada acima. Ele começava a sua carreira tocando em uma casa noturna (para usar um eufemismo), chamada Balalaika, ali naquela região onde fica a Prefeitura. Por estar próxima do arroio Itaimbé, o vulgo denominou o lugar de “zona do agrião”.
Naquela noite em que relatava esses episódios, ele comemorava o fato de haver tocado no Theatro Treze de Maio, pela primeira vez e acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Santa Maria, conduzida pelo maestro Frederico Richter. Em poucas palavras ele resumiu a sua existência de artista negro, autodidata, lutando contra todas as formas de resistência que o preconceito é capaz de engendrar. Mas ele não tinha nenhum ressentimento. Na verdade, era um vencedor e tinha convicção disso.
Em outra ocasião, contou-nos que foi colega de farda, na Brigada Militar em Santa Maria, do compositor Lupicínio Rodrigues. Confirmou o que eu tinha ouvido do cartunista Sampaulo (em uma entrevista que o Grupo de Risco – Máucio, Elias Byrata e eu – fizemos para a Revista Garganta do Diabo, na casa do Santiago, em Porto Alegre) sobre o fato de que a música Felicidade foi realmente composta aqui em nossa cidade, para celebrar um caso de amor do Lupi.
No entanto, não temos um espaço que celebre, que torne monumento este fato. Neste pequeno espaço da crônica, já são uma dúzia de informações que são parte da história cultural de nossa cidade. Precisamos cuidar da memória, especialmente a afetiva, capaz de formar a autoestima cidadã, aquela que ajuda a comunidade a cuidar do seu espaço, de reverenciar quem realmente merece, como o nosso querido e sempre lembrado Maestro Setembrino.
(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.
OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a foto do Maestro Setembrino, que ilustra esta crônica, é uma Reprodução.
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