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Ler para viver – por Atílio Alencar

De uns tempos pra cá ando cedendo a certos hábitos que nunca tive. Um deles é o repentino gosto por listas e metas de leitura. Sempre fui de ler do modo mais desorganizado possível, encadeando leituras radicalmente distintas, interrompendo-as bruscamente ou mesmo dividindo o tempo entre trechos de um e outro livro.

Não que tenha abandonado de todo o rigor do caos: ainda gosto, por exemplo, de ter livros dispostos em vários cômodos da casa, de modo que, ao movimentar-me pelo espaço, possa criar itinerários de leitura que respondem ao acaso e ao humor de cada espaço. Se, por exemplo, sei que é no pequeno escritório que as manhãs de inverno propiciam uma luz solar mais intensa, ali tento deixar um ou mais volumes que me abasteçam com o que preciso para pensar ao sol. Já quando o tempo está chuvoso, sei que é da janela do quartinho de hóspedes que se vê melhor a paisagem de nuvem que engole a cidade. E neste período deixo por ali algo que possa ler no mesmo ritmo espiritual da chuva rala ou da tempestade.

Mas essas pequenas bússolas com que me deparo enquanto vago pela casa estão longe de compor um mapa muito coerente. São apenas tentativas de traçar uma cartografia que me permita, aconteça o que acontecer em qualquer estação do ano, ter sempre um livro à mão. Porque penso que o convívio comigo mesmo é um tanto mais pobre se não estou amparado pelas palavras de um bom escritor(a).

Uma tática nova, que adoto não sem certa relutância, é a de estabelecer metas de leitura. Final do ano passado, quando finalmente decidi contabilizar os livros lidos ao longo do ano, me deparei com uma realidade longe da ideal. Não que eu me sinta pressionado a submeter o prazer de uma boa leitura a alguma questão estatística. Mas se durante meu tempo livre desperdiço as horas inúteis sem ter lido um conto, um poema, alguns capítulos de um romance ou obra teórica, fico com a impressão que afinal de contas não aproveitei tão bem assim meu ócio.

Abre parêntese: relendo o que escrevi até aqui percebo que corro o risco de soar pedante. Espero que não seja entendido assim. Não creio que a literatura ou os livros sejam sagrados, apesar de adorá-los. Outras formas de relacionar-se com a vida e a arte podem ser até mais interessantes. Falo apenas de uma atividade que me dá prazer e, acredito, contribui para que eu seja uma pessoa melhor, de um jeito ou de outro. Longe de mim querer dizer como cada um deve ocupar seu tempo de passagem por este mundo. Fecha parêntese.

Pois bem. Percebendo que podia ler mais, resolvi me desafiar a cumprir uma meta de leitura que previa um livro por semana durante o ano corrente. Bom, o que acontece é que na verdade já passamos do meio do ano e, com exceção daquele período inicial que coincide com as férias, não cheguei nem perto de atingir a marca que eu mesmo me impus. Mas já posso notar alguns resultados satisfatórios, que seriam na verdade efeitos colaterais de tipo benéfico.

Por exemplo, como tento levar mais ou menos a sério o desafio, cada vez que fico tentado a ler os comentários preconceituosos em notícias que envolvem a defesa ou o ataque aos Direitos Humanos nas redes sociais, lembro que poderia estar folheando uma leitura emancipatória, ou pelo menos instrutiva. E isso é estímulo suficiente para me fazer levantar da frente do computador em que trabalho e buscar os cantos da casa onde sei que os livros me aguardam com generosa paciência.

Não quero me alienar, não me entendam mal. Mas é que às vezes é bom para a saúde da gente saber que a mesma humanidade que degenera em ódio e clamores por linchamento é também o nascedouro de Pessoa, Cortázar, Saramago, García Lorca. De tanta gente que sabe dizer tão bem que a melhor poesia é viver e deixar que o outro viva.

E assim tenho convivido com minhas novas manias de metas e listas de leituras. Como um antídoto que ajuda e respirar no meio da nuvem tóxica da crueldade e da ignorância. Afinal, frente a qual tribunal eu seria condenado por preferir da humanidade as flores ao invés do esterco?

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Um Comentário

  1. Parabéns Atílio, sempre é conveniente refletir sobre livros e leituras nesses tempos bicudos e de egoísmo desumanizante!

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