É CINEMA. Bianca Zasso e uma bela obra, esquecida pelo Oscar, que vai te tirar da zona de conforto
Oceano fantástico
Por Bianca Zasso*
Começou uma das mais loucas e engraçadas épocas do ano. Aquela onde seu vizinho que mal dá bom dia, sua tia, seu irmão, seu chefe, a pessoa na mesa ao seu lado no restaurante e quem mais entrar no trem resolve opinar sobre os filmes indicados ao Oscar. A premiação mais popular do cinema cai na boca do povo e parece fazer surgir das profundezas de muitos uma vontade irrefreável de comentar sobre cinema, questionar indicações e, é claro, ir ao cinema assistir a estes filmes. É como uma febre, que toma conta e, após o dia 9 de fevereiro, data marcada para a cerimônia deste ano, passa e os antes empolgados aspirantes à críticos voltam para suas preguiças e suas sessões com mais pipoca que atenção à tela.
Pois a coluna de hoje faz uma proposta boa, bonita e barata, com uma produção que foi ignorada pelo Oscar, mas que merece sua atenção não apenas por ter sido apresentada em um dos mais importantes e respeitados festivais de cinema do mundo, Cannes, mas porque vai te tirar da zona de conforto. De alma lavada, por sinal. Atlantique, uma coprodução entre França, Bélgica e Senegal, tem direção da francesa (e também atriz) Mati Diop e foi bancada por aquela plataforma famosa de streaming, que costuma ser a queridinha dos acometidos pela febre do Oscar citada no primeiro parágrafo. O longa apresenta como protagonista Ada, uma adolescente que vive na paradoxal cidade de Dakar, no Senegal, onde a pobreza extrema convive lado a lado com prédios futuristas e luxuosos. E na construção de um deles que trabalha Suleiman, jovem por quem Ada se apaixona. Apesar da reciprocidade na relação, ela não pode engatar um romance pois está prometida em casamento com outro homem. Diga-se de passagem, rico e com nenhum interesse nos desejos da moça.
Mati Diop constrói o visual de Atlantique unindo poesia e câmera em estilo documental. As primeiras imagens nos apresentam Dakar como um grande quebra-cabeça, onde poeira, mar e o barulho das máquinas se misturam com as vozes da multidão nas ruas. Num dos momentos mais hipnóticos do longa, acompanhamos o sofrimento de Suleiman na carroceria de um caminhão, acompanhado de seus colegas de trabalho, desolados com o não pagamento de seus salários. Os gestos desesperados do garoto tomam conta do espectador, que segue sem pestanejar para acompanhar o encontro dele com Ada, dotado de uma delicadeza e sensualidade únicas.
Se o foco da diretora fosse apenas o dilema do amor proibido, já seria uma ótima escolha. Mas comum não é um adjetivo cabível para o cinema de Mati Diop. Além de movimentarem o mercado da construção civil, as centenas de trabalhadores fazem surgir bares e boates à beira-mar, frequentados por Ada e suas amigas em busca de algo além dos costumes muçulmanos e da cobrança por um casamento rentável. Só que uma noite muda tudo. Os rapazes desaparecem sem explicação, após saírem para o mar em uma pequena embarcação. E é aí que o fantástico surge e torna Atlantique um roteiro singular. As garotas que se envolveram de alguma forma com os desaparecidos passam a ser possuídas por seus espíritos e saem em busca de justiça com seus patrões. O clima de lenda contada por homens do mar coloca uma nova aura na trama, fazendo-a flertar de forma sutil e inteligente com o cinema de horror focado em zumbis em ilhas tropicais, algo que o cinema italiano dos anos 70 abordava das mais variadas formas (e gostos duvidosos, em alguns casos).
O problema que causa o desequilíbrio em Atlantique é a necessidade de resolver, pelo menos de maneira parcial, o mistério dos espíritos. Por conta de um incêndio causado no dia do noivado de Ada, supostamente causado pelo fantasma de Suleiman no corpo de alguém, surge um novo núcleo de personagens no filme, capitaneado por Moustapha, um jovem investigador. O excesso de sequências que acompanham como este personagem vai esclarecer a dúvida macabra que domina as garotas locais toma o espaço que poderia ser do deslumbre visual dos momentos em que esta espécie de febre domina e transforma a vida das mulheres. Talvez preocupada em não deixar nenhuma ponta solta da mini trama de investigação, a diretora abriu mão de sua criatividade visual, deixando os primeiros momentos do longa perdidos na cabeça do espectador, quase como se tivessem sido tirados de um outro filme ou mesmo dirigidos por outra pessoa. Não chega a interromper por completo a experiência de quem assiste, mas saímos da sessão com uma falta no peito, como se algo tivesse sido escondido ou abstraído da versão final.
Atlantique não é um filme fácil, ainda mais para quem está acostumado ao formato padrão do cinema americano médio. A emoção vem de outros lugares nesta história, que tem muito de sua força na atuação na medida de Mama Sané. Sua Ada é uma garota de poucas palavras, mas reações intensas, seja nos beijos que troca com Suleiman ou na busca por seu amor perdido que ela acredita ter voltado das águas agitadas e sinistras do mar de Dakar. Um mar que assusta e encanta, com ondas que vem, nos pegam e nos dominam, e depois voltam, levando um pouco de nós em cada gota. Depois, começa tudo outra vez. Como o Oscar nosso de cada ano e seus debatedores esporádicos e pouco dedicados a ouvir outros chamados.
(*) Bianca Zasso, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pela Universidade Franciscana (UFN). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Suas opiniões e críticas exclusivas estão disponíveis às quintas-feiras.
Mais popular, mas não mais como antanho. Noutro dia fui ver porque Downey Jr. não ganhou o premio e o marionete DiCaprio ganhou.
Simples, concorreu com Al Pacino, Clint Eastwood e Denzel Washington. Na segunda oportunidade Heath Ledger e Philip Seymor Hoffman. Dos filmes nem se fala, Imperdoáveis, Perfume de Mulher, etc.
Filme sugerido é para aficionados. Não faltou menção ao Netflix?