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O adeus ao cientista da Memória – por Leonardo da Rocha Botega

“Somos exatamente o que nos lembramos e também somos aquilo que não queremos lembrar”. Foi com essa frase que Iván Izquierdo tentou resumir uma das conclusões de suas pesquisas sobre o funcionamento do cérebro e da mente humana. Graças a essas pesquisas a Neurociência pode avançar muito em termos de funcionamento da memória e dos processos de aprendizagem. Algo fundamental, tanto no campo da educação, como no campo da saúde.

Professor, médico e neurocientista, considerado um dos mais importantes pesquisadores do mundo, Iván Izquierdo, “o cientista da Memória”, nos deixou no último dia 09 de fevereiro, em razão de uma pneumonia. Com 700 artigos publicados em periódicos científicos, aproximadamente 23 mil citações por pares e 60 prêmios conquistados, constituiu uma trajetória tão brilhante que passou a ser considerado um dos principais pesquisadores neurocientistas do mundo.

Argentino de nascimento, filho de um cientista e de uma dona de casa, Iván ingressou no Curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA) em 1961. Mesma instituição em que se doutorou em Farmacologia. Completou seus estudos com um estágio de Pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (EUA). Na sequência voltou à UBA, onde foi professor adjunto. Transferiu-se para a Universidade Nacional de Córdoba, onde atuou por quase uma década. Casado com uma brasileira, deixou a Argentina em 1973, quando a situação política do país “estava se tornando muito ameaçadora”. A situação se agravaria ainda mais após a sua partida. Em 1976, o Golpe Civil-Militar liderado por Rafael Videla promoveria “um fechamento súbito e total” do livre-pensar do país.

No Brasil, após uma breve passagem por Porto Alegre, cidade onde morava a família da esposa, Iván atuou por dois anos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Retornou para Porto Alegre em 1978, onde fixou residência e passou a atuar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Naturalizou brasileiro em 1981, quando percebeu que “já se sentia em casa”. Na UFRGS, ao longo de 20 anos dirigiu o Centro de Memória do Departamento de Bioquímica do Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS). Ali desenvolveu suas pesquisas, formou jovens pesquisadores e influenciou outros tantos pesquisadores no mundo todo. Aposentou-se em 2003.

Um ano depois ingressou na PUC-RS. Atuou no Programa de Pós-Graduação em Gerontologia Biomédica e no Programa de Pós-Graduação em Medicina e Ciências da Saúde, além de assumir a coordenação do Centro de Memória da instituição. No mesmo ano, tornou-se diretor da Academia Brasileira de Ciências. Em 2007, foi eleito membro estrangeiro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos da América e recebeu a Ordem de Rio Branco, a maior comenda civil brasileira. Em 2012, ajudou a fundar o Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul. Em 2018, foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) pela realização de pesquisas que levavam a melhoria da qualidade de vida humana. Na ocasião, recebeu o Prêmio Internacional Unesco-Guiné Equatorial para Pesquisa em Ciências da Vida, uma consagração pelo conjunto de sua obra.

Apesar de sua naturalização brasileira, ao longo de muitas entrevistas e palestras, Iván Izquierdo sempre destacou sua idolatria pelo seu compatriota argentino Jorge Luiz Borges. Chegou a utilizá-lo inúmeras vezes como exemplo de como a leitura e a escuta da leitura (Borges ficou cego ainda jovem) mantém o cérebro ativo. É de Borges a frase “Não há prazer mais complexo que o do pensamento”. Não sei ao certo até aonde tal frase o influenciou.

O certo é que ao longo de toda a sua vida estudar a complexidade do cérebro, a nossa máquina de produzir pensamentos, tornou-se sua grande fonte de prazer de Izquierdo. Um prazer que, a exemplo de muitos grandes intelectuais, nunca negou ao seus alunos e companheiros de pesquisa. Um prazer que todos aqueles que em algum momento puderam ouvi-lo, também puderam sentir. Um prazer que fará muita falta em um país que ao longo de sua história nega aos seus estudantes o prazer pela ciência e o conhecimento de sua própria memória.

*Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Crédito da foto (no destaque, Iván Izquierdo): Camila Cunha / PUCRS.

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2 Comentários

  1. Gabriel García Márquez. Cien Años de Soledad e a “doença do esquecimento”. Seria Alzheimer? A Ciência e a Literatura jamais serão esquecidas. Vide Freud, Jung, Einstein… Os homens passam. As idéias ficam. Oxalá!

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